Há um fosso entre hospitais que dizem fazer aborto legal daqueles que de fato oferecem esse serviço. A conclusão vem de uma pesquisa inédita feita pela Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), em parceria com a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Financiado pelo Ministério da Saúde, o estudo está em fase de análise de dados e incluiu na amostragem todos os municípios com mais de 100 mil habitantes. Foram encontradas 80 unidades que declararam realizar aborto (nem todas credenciadas pelo Ministério da Saúde). No entanto, de cada cinco equipes, apenas uma realmente faz o procedimento.
Na avaliação de um dos responsáveis pelo levantamento, o professor da Unicamp Aníbal Faúndes, esse abismo se deve a questões de ordem moral. "Um hospital nega que faz o serviço, mesmo que legal, porque tem medo de que as pessoas pensem que a instituição é a favor da descriminalização do aborto."
Outro problema apontado por Aníbal é a desinformação. De acordo com ele, uma pesquisa realizada pelo instituto Ibope em 2003 diz que 35% das mulheres sabem do direito de abortar caso fiquem grávidas após um estupro. Apesar disso, apenas 5% conhecem onde realizar o procedimento de forma segura. "Os hospitais precisam aceitar que estão em condições de fazer aborto legal", opina o estudioso.
Em outro estudo, a Organização Não-Governamental (ONG) paulista Católicas pelo Direito de Decidir (CDD) chegou a conclusão parecida. Ao consultar a lista dos 62 hospitais habilitados pelo Ministério da Saúde para fazer aborto legal e telefonar para cada um, descobriu-se que somente 40 ofereciam o atendimento.
Além disso, em Roraima, Amapá, Tocantins, Piauí e Mato Grosso do Sul, nenhuma unidade de saúde confirmou fazer o procedimento. Os pesquisadores da ONG não descartam que haja alguma instituição que realize aborto nessas localidades, mas dificilmente será encontrada.
BO – Outro problema que esbarra na dificuldade de informação é o fato de muitas clínicas ainda exigirem um boletim de ocorrência da vítima de estupro que engravidou. Mas o documento não mais é exigido pelo Ministério da Saúde, conforme a portaria nº 1.108, de 1º de setembro de 2005. Apesar disso, o Conselho Federal de Medicina (CFM) recomenda a manutenção do pedido para a segurança dos profissionais de saúde. A assessoria de imprensa do Conselho Regional de Medicina (CRM-GO) justifica que o boletim é a única forma de provar que a mulher foi violentada.
Em Goiás, o Hospital Materno-Infantil é referência em aborto legal e exige a apresentação de um BO. Segundo a subgerente de Ações Programáticas da Superintendência de Políticas de Atenção Integral à Saúde (Spais), Sirlene Gomes de Oliveira, é comum que a unidade seja a porta de entrada da mulher que procura o aborto legal, tanto quanto delegacias ou Instituto Médico- Legal (IML).
Nesses casos, o Núcleo de Violência do hospital avalia a situação e encaminha a vítima a fazer os procedimentos necessários antes do aborto. Mas o Materno-Infantil só oferece o atendimento caso a gravidez seja de até 12 semanas. "Mais que isso, só há como fazê-lo em São Paulo", esclarece Sirlene.
Direitos
O promotor de Saúde do Ministério Público, Isaac Benchimol, diz que, por motivos religiosos, um profissional pode se recusar a fazer a técnica, mas não o hospital. Ele lembra que o Código Penal permite hoje dois tipos de aborto: o decorrente de estupro e o terapêutico, quando há riscos para a saúde da mãe. Segundo Isaac, casos de malformação anatômica – como anencefalia (ausência total ou de partes do cérebro) – são consentidos por ordem judicial. O alvará leva, em média, sete dias.
Conforme os artigos 124, 125, 126 e 127, todos do Código Penal, aborto é considerado crime no Brasil. As penalidades para a prática feita pela própria mulher ou por terceiros variam de um a 10 anos de reclusão ou detenção. Mas há exceções, descritas no artigo 128, a seguir:
Não se pune aborto praticado por médico:
# se não há outro meio de salvar a vida da gestante
# aborto no caso de gravidez resultante de estupro
Números
# 35% das mulheres sabem do direito de abortar caso sejam vítimas de estupro
# No entanto, só 5% delas conhecem locais onde podem conseguir aborto de forma segura e dentro da lei
# De cada cinco unidades de saúde que dizem realizar aborto legal, só uma de fato oferece o serviço