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A Anvisa e o fracionamento de medicamentos

“O Decreto nº 5.348 vem escorado, de maneira ilegal, na Lei nº 5.991, e, por qualquer ângulo que se queira examiná-lo, é um abuso de poder”

Por Vicente Nogueira

Não se admite ato administrativo que não esteja previamente autorizado em lei. Assim ensina a doutrina e a jurisprudência. Cabe à administração agir “secundum legem” e não “contra legem” e nem “extra legem”. A autoridade sanitária é useira e vezeira nos casos de abuso de poder, conquanto inspirada de boa-fé, mas sempre equivocada no sentimento de defesa da causa pública.

O Decreto nº 5.348 é mais um desses abusos, porquanto extrapola as determinações da Lei nº 5.991. Não há como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) regulamentar um decreto que é “extra legem”. O Decreto nº 5.348 deve ser analisado sob dois ângulos distintos, o da lei e o da proteção à saúde. Na Lei nº 5.991, que regula o comércio farmacêutico, não é contemplada a atividade fracionar. A Lei nº 6.360 dispõe que “somente poderão fracionar as empresas autorizadas pelo Ministério da Saúde”. A Lei nº 6.437 diz, ainda, que é infração sanitária fracionar medicamento sem autorização do órgão competente. O artigo 8º da Lei nº 8.078/90 dá ao fabricante do produto o encargo de, por meio de impressos, prestar informações ao paciente.

Quanto à proteção à saúde, não se pode afirmar que a segurança e a qualidade do medicamento estarão asseguradas, já que com o manuseio da embalagem não se pode mais garantir a eficácia do produto. O fracionamento de medicamentos de uso contínuo e antibióticos, ao contrário do que se alardeia, não trará nenhuma economia monetária. Os comprimidos, drágeas e cápsulas embalados em frascos com cinta de segurança não poderão ser fracionados, assim como xarope, gotas, spray, soluções, suspensões, pós e granulados. Os produtos de uso contínuo e controlados, de fato, pesam nos bolsos dos consumidores e não será através de fracionamento que se reduzirá seu custo, assegurando o equilíbrio econômico-financeiro dos pacientes. É preciso considerar que, lamentavelmente, enquanto os pacientes portadores de doenças cardiovasculares, endocrinológicas, reumatológicas, gástricas e tantas outras sobreviverem, hão de tomar os medicamentos, e a interrupção ocasionará a reagudização da doença, colocando sua vida em risco. É uma medida inócua e que não trará nenhuma vantagem aos pacientes de moléstias crônicas. A economia só frutifica quando usa recursos de maneira eficiente. É dever, sim, do governo aprimorar a distribuição gratuita de medicamentos e ampliar o seu acesso.

A Anvisa, regulamentando a matéria, estará jogando ao vento a Resolução nº 140. Essa resolução determina que as “informações ao paciente são obrigatórias e devem ser escritas em linguagem acessível”. Portanto, ao se autorizar o fracionamento de medicamentos, essas informações não estarão ao alcance dos consumidores, contrariando, ainda, o artigo 31 do Código de Defesa do Consumidor. Na azáfama dos balcões das farmácias e drogarias, jamais os pacientes terão atendimento adequado, o que poderá ocasionar risco à saúde. O fracionamento, seguramente, facilitará a falsificação, mesmo porque, como se sabe, a maioria das farmácias e drogarias não é dotada de profissional habilitado, além de o horário de presença de um farmacêutico responsável ainda ser motivo de discussão. É notória a falsificação e roubo de carga e, na maioria das vezes, isso é detectado no ponto de venda, o que dificultará o rastreamento. Não podemos esquecer que a alta carga tributária é favorável ao sonegador e ao falsificador, já que a ilegalidade sempre tem sua recompensa, com descontos absurdos no preço final do produto. Esse tipo de decisão é de um cenário desanimador que gera grave perigo e devemos estar atentos, prontos para combater.

O fracionamento descaracterizará o medicamento, já que informações como fabricante, endereço, lote, data de fabricação, validade, SAC, precauções e efeitos colaterais não estarão ao alcance. As embalagens são lacradas, invioláveis com selo e tinta reativa para segurança do consumidor, cujo objetivo é frustar a falsificação. Zelmo Denari diz que “a responsabilidade por vícios de informação pode ser atribuída, excepcionalmente, aos demais partícipes do processo distributivo dos medicamentos em geral (tais como farmácias, drogarias, hospitais e médicos) quando tenham induzido em erro o consumidor, desvirtuando as informações sobre sua utilização e riscos prestados pelos respectivos fabricantes. A hipótese é de exclusão de responsabilidade do fabricante, por culpa exclusiva de terceiros.” (CDC, Forense Universitária, 7ª edição).

O aspecto legal poderá até ser contornado através de um medida provisória alterando a Lei nº 5.991, mas jamais evitará o risco sanitário, ferindo de morte o artigo 196 da Constituição, já que, com essa decisão, não estará protegendo o paciente. O Decreto nº 5.348 vem escorado, de maneira ilegal, na Lei nº 5.991, e, por qualquer ângulo que se queira examiná-lo, é um abuso de poder. “Se o regulamento se afasta da lei, é inconstitucional” (Cretella Jr., Direito Administrativo, Forense, 14ª edição). Fracionamento é, na verdade, uma decisão política e populista e as autoridades não atentaram para o risco sanitário, expressão que a Anvisa não se cansa de dar ênfase.

Vicente Nogueira é advogado e diretor presidente do escritório Vicente Nogueira Advogados