Pelo diagnóstico do médico José Gomes Temporão, a saúde brasileira tem um mal crônico, que pode ser descrito assim: gestão precária das pessoas, que se defendem acusando os ministros de querer privatizar os hospitais. Ele prescreve uma receita polêmica, que está apenas abrindo a temporada de debates: a gestão do sistema por meio de fundações estatais de direito privado, com funcionários contratados pela Consolidação das Lei do Trabalho (CLT) e tendo de cumprir metas.
Em entrevista ao Estado, o médico, que também é o ministro da Saúde deste segundo mandato do governo Lula, admite que para melhorar o sistema universal de saúde, o SUS, o Brasil precisa elevar os investimentos públicos para a casa dos 70% dos gastos totais do setor. Diante, porém, da realidade orçamentária do País, Temporão constata: "Não dá mais para pedir um cheque em branco."
O ministro também acha "razoável" que o País adote uma espécie de serviço civil obrigatório para médicos que estudaram em universidades públicas. A idéia, que já despertou grande discussão no passado e foi descartada, prevê que recém-formados sejam enviados para cidades consideradas de grande interesse público. Um recurso para tentar reduzir a carência de médicos em áreas remotas. "Hoje, só as Forças Armadas fazem isso. Mas acho razoável também para alguém que estudou numa faculdade pública."
A proposta, em estudo por sua equipe, está cotada para integrar o PAC da Saúde, um conjunto de medidas que até o fim do mês será apresentado ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A mudança na gestão dos recursos humanos consta do plano porque, na opinião de Temporão, a condição estável de funcionário público atenta contra os interesses do público ao não permitir que seja premiado quem trabalha mais e melhor. Em três meses de ministério, ele abriu bons debates com a cúpula da Igreja Católica, com a indústria da cerveja e com o cantor Zeca Pagodinho. "Cada ministro tem seu estilo", pondera. A seguir, os principais trechos da entrevista concedida ao Estado.
Em poucos meses, o senhor deflagrou várias polêmicas, mas quase não tratou do grande problema de seu ministério, que é a gestão do Sistema Único de Saúde (SUS).
Provoquei polêmica, mas é preciso ser justo. Tirei a política sobre bebidas alcoólicas da gaveta, depois de três anos de espera, lancei a política de planejamento familiar, sem falar no licenciamento compulsório (de medicamento antiaids). Cada ministro tem seu estilo, mas precisa ter sempre uma posição político-pedagógica, tem de sinalizar para a sociedade os grandes temas. É preciso, claro, transformar isso em coisas práticas.
A projeção política do ministro facilita as negociações no Palácio do Planalto. É isso?
Passei quatro meses na chuva, sem saber se seria ou não ministro. Isso foi bom porque eu me preparei, amadureci uma série de idéias. Avalio que, dentro do governo Lula, a saúde perdeu um pouco de visibilidade nos últimos anos. Estou certo de que o plano que vou apresentar (o PAC da Saúde) vai devolver à saúde o destaque que não deveria ter perdido.
Quando o PAC da Saúde será apresentado?
Minha equipe deve terminar neste mês a versão conceitual, que trará as grandes diretrizes a serem avaliadas pelo presidente. Assim que elas forem aprovadas, vamos detalhar. O plano traz medidas relacionadas à atenção à saúde (acesso, qualidade, tempo de espera para realização de consultas), à gestão (para melhorar a eficiência e a qualidade dos hospitais públicos e das redes integradas) e políticas para qualificação da saúde. Destaco, ainda, a dimensão econômica da saúde para gerar desenvolvimento, riqueza e emprego. Para isso, vamos usar o poder de compra do Estado, de um lado, e linhas de financiamento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para desenvolver produtos e tecnologias.
Mas o programa do BNDES já existe há anos…
Está no balcão de ofertas do BNDES, mas sem foco. Nossa proposta vai definir critérios, trabalhar política real de incentivo. Tive uma reunião na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo com entidades da cadeia produtiva da saúde. Criamos um comitê permanente, o ComSaúde, para trabalhar nesta perspectiva.
Essa visão de investimento pode ajudar na discussão sobre a emenda 29, que regulamenta a vinculação do dinheiro da Saúde?
Dentro do governo estamos discutindo uma estratégia única que será apresentada e debatida pelo Congresso. Há três propostas em discussão: a vinculação pelo crescimento do PIB (Produto Interno Bruto), a vinculação sobre a receita e a vinculação sobre o orçamento. Temos de construir uma estratégia que seja viável do ponto de vista político e que permita que todos os Estados cumpram as determinações. Temos de ter uma solução pragmática, não uma camisa-de-força.
Dentro do governo, o que o sr. defende?
Se eu digo que quero mais dinheiro para saúde a pergunta imediata é: ‘Você quer mais dinheiro para quê? E a eficiência do gasto?’ No meu plano vou trabalhar a eficiência do gasto. Vamos gastar melhor o dinheiro que se tem. Mas sabemos que isso não é suficiente. A população está envelhecendo rapidamente no País, vivemos a transição demográfica e o custo da assistência médica está crescendo muito. A participação do gasto público no total de gastos na Saúde é de 45%.
Como vai lidar com o ilimitado apetite de políticos para abrir hospitais em seus redutos eleitorais?
Com o dinheiro do Ministério da Saúde é que isso não será feito. Vamos ter um plano nacional de investimentos, prevendo que tipo de hospital precisa ser construído, com que tecnologia, quanto vai custar e quem vai manter. O que não se pode é aprovar hospital porque o prefeito quer. Um hospital com menos de 150 leitos é inviável. Cidades que não tiverem demanda, sem escala, não precisam de um hospital.
Hospital que não atender a essas características será fechado?
Sabemos que várias unidades hospitalares não atendem a esse padrão. Mas eles serão redirecionados. Podem deixar de ser hospitais, mas servir de referência, de apoio para clínica geral, para o Programa de Saúde da Família. Só vou fechar em último caso, mas temos de dar uma destinação mais eficiente a esses hospitais.
Por que o sr. quer que os hospitais funcionem sob regime de fundação estatal de direito privado?
É um modelo moderno de gestão dentro do Estado. Uma proposta séria que pode significar um novo paradigma na administração pública. Não há ameaça de privatização, as contratações continuarão a ser feitas por meio de concurso público. Mas haverá profissionalização da gestão, com os hospitais trabalhando sob regime de contratualização. Os hospitais terão um orçamento e metas a atingir. E os funcionários trabalharão sob regime de CLT.
Por que só os hospitais federais precisam dessa mudança?
Essa é uma pergunta a ser feita para os outros ministérios. Estou brigando pela eficiência na saúde. A fundação será um recurso importante.
Mas a contratualização de hospitais já existe…
Ela não avança completamente. O grande problema é a gestão de pessoas.
Hoje, com estabilidade do funcionário público, como colocar em prática um modelo que premia o desempenho?
Pela nossa proposta, quem trabalha mais e melhor vai receber mais. É uma organização voltada para resultados. Na administração direta tudo é voltada para meios. Precisamos de gestão profissionalizada.
No Instituto do Câncer, no Rio, começaram manifestações contra o projeto da fundação estatal de direito privado.
É um protesto com viés ideológico. Usar jargões que falam em "privatização da saúde" empobrece o debate. E é engraçado acusar de privatização, pois queremos exatamente o contrário. Hoje, muitos hospitais públicos não atendem ao interesse público porque estão privatizados pelos interesses corporativos. Será que um médico hoje trabalha pensando se o hospital está alcançando as metas? Se a população está satisfeita ou não?
Onde está a proposta e como vai ser instituída?
A proposta está na Casa Civil e passa pelos últimos ajustes. Será apresentada ao Congresso sob forma de projeto de lei. Vamos debater com profissionais de saúde, para apresentar um plano de carreira próprio, com salários adequados e um contrato de metas. Caso a equipe não alcance os objetivos, a diretoria será deposta. Hoje, o que se tem é um conjunto de hospitais que, quando chega o fim do ano, pede suplementação orçamentária.
Como lidar com o problema da falta de médicos especialistas em várias regiões do País?
Vamos criar 800 pontos de telesaúde, para médicos que trabalham em áreas remotas, em municípios de difícil acesso. Com tecnologia disponível, vamos proporcionar que eles consultem professores das melhores universidades sobre casos que eles tenham dúvidas.
Mas esse sistema é para médicos que já estão nas cidades. O que fazer onde não há especialistas?
Médicos se concentram onde a riqueza se concentra. É assim em qualquer região do mundo, não só no Brasil. O bairro do Morumbi,
Há outro instrumento importante, que já causou grande polêmica: o serviço civil obrigatório. Médicos formados em universidades públicas que trabalham por um ou dois anos em um local de grande interesse público.Hoje, só as Forças Armadas fazem isso. Mas acho razoável aplicar isso também para alguém que estudou numa faculdade pública. É preciso, evidentemente, oferecer condições de trabalho e salário razoável. E que esse período depois possa servir de qualificação como especialista.
Em que pé está o Programa Saúde da Família, que perdeu força no primeiro mandato do governo Lula?
A qualidade é muito heterogênea entre as 27 mil equipes com 260 mil agentes comunitários. Um estudo conduzido por cinco universidades mostra que o serviço de Belo Horizonte é elogiado, mas em outros locais a cobertura é baixa. É preciso ampliar e qualificar a cobertura. Uma outra pesquisa mostrou que 60% dos idosos disseram que já haviam sido visitados por agentes de saúde. Parece bem razoável, mas somente 10% disseram que haviam recebido a visita de um médico. Isso significa, possivelmente, que o médico continua com aquela visão tradicional de não ir à comunidade. Mas a filosofia do PSF é outra. O médico tem trabalho no consultório do posto, mas tão importante quanto isso é ele desenvolver atividades comunitárias, visitar os doentes
Quem é:
José Gomes Temporão
É ministro da Saúde do governo Lula desde março.
Especializado em doenças tropicais, é doutor
Também já era conhecido do sistema público. Foi, por
exemplo, secretário-geral do Instituto Nacional do Câncer (Inca). Chefiou ainda a Secretaria de Atenção à Saúde do próprio ministério.