O Sistema Único de Saúde é o maior programa de inclusão social, a maior reforma de Estado em andamento e a única política pública realmente universalista e igualitária do Brasil. Ele foi criado pelo Congresso, na constituinte de 1988, e regulamentado por leis ordinárias votadas em 1990 e 93. Antes do SUS, só tinham direito à saúde no nosso país, garantido em lei, os servidores públicos e os trabalhadores com registro em carteira profissional.
Muita coisa foi feita nessa ultima década. Muito falta fazer para que o sistema seja implantado na sua plenitude. Os números já são impressionantes: 1,3 bilhão de procedimentos de saúde; 300 milhões de consultas médicas; 11 milhões de internações; 2,6 milhões de partos; 250 milhões de exames laboratoriais; 40 milhões de vacinações; 8 milhões de ultra-sonografias; 130 milhões de atendimentos de alta complexidade, atendimento integral para portadores de HIV, renais crônicos e pacientes com câncer; 80 mil cirurgias cardíacas; 20 mil transplantes de órgãos; 50 milhões de atendimentos pelo Programa de Saúde da Família etc. Tudo isso a cada ano!
O SUS não tem dono. A partidarização o enfraquece. Ele exige um trabalho conjunto dos governos federal, estaduais e municipais, induzindo uma colaboração e uma continuidade entre administrações de diferentes partidos. O financiamento é 58% federal, 18% estadual e 24% municipal (Dados Siops 2000). A execução dos serviços é prioritariamente municipal -descentralização que transformou municípios virtuais em entes públicos capazes de administrar uma política abrangente e complexa. Hoje, os 5.500 municípios trabalham a saúde em conjunto com os 27 Estados e a União.
O Sistema Único de Saúde é a única política pública realmente universalista e igualitária do Brasil
Os indicadores retratam esse esforço nacional. A melhoria na classificação do Brasil no último ranking do IDH da ONU deveu-se à melhoria dos indicadores de saúde. Nossa expectativa de vida subiu; a mortalidade infantil caiu em todo o país -embora continuem altas a mortalidade materna, a prevalência de hanseníase etc.
Apesar de todo esse esforço do Brasil, a elite brasileira ignora e despreza o SUS. Quando falo de elite, refiro-me à elite capitalista e à elite dos trabalhadores. São cerca de 30 milhões que recebem subsídios, por meio do Imposto de Renda, para manter seguros privados de saúde, além de usarem o SUS na vigilância epidemiológica e sanitária, nas urgências e atendimentos realmente caros. Também imbutem os custos dos serviços privados já subsidiados no preço dos produtos, repassando-os, assim, à população.
Isso explica por que, nesses dez anos, o SUS sofreu golpes “classistas”, como o corte de 50% do seu orçamento federal, feito pelo presidente Collor, ou a dificuldade de aprovação da CPMF -os banqueiros e o PT eram contra- e, depois, a facilidade com que Malan, vendo a CPMF entrar pela porta do orçamento do SUS, tirou pelas janelas desse orçamento as outras fontes tradicionais de financiamento do sistema -Cofins e Contribuição sobre o Lucro Líquido.
Por tudo isso, o Congresso Nacional votou, em 2000, a emenda constitucional nº 29. Era a garantia de um orçamento mínimo obrigatório municipal, estadual e federal, como a educação tinha desde 1988. Ela prevê um discreto, embora importante, aumento do Orçamento nacional de Saúde, permite o planejamento do setor e evita que os municípios que investem em saúde continuem sendo invadidos por ambulâncias de municípios que não querem gastar em saúde.
Em 2001 e 2002 ela já começou a dar resultados positivos, apesar das irregularidades e resistências de alguns governos. Por exemplo, a Advocacia Geral da União forçou uma interpretação que prejudicou nosso orçamento federal, e muitos Estados não cumpriram integralmente a emenda.
Mesmo assim, chegamos, em 2002, a um orçamento nacional recorde de cerca de R$ 40 bilhões, o que dá R$ 260 por pessoa ao ano. Dividindo esse valor por 365 dias, dá R$ 0,70 por pessoa diariamente! Comparados aos de qualquer outro país, são poucos esses recursos e o SUS faz um moderno milagre da multiplicação dos pães e peixes.
Agora, infelizmente, chegamos ao maior golpe contra o SUS desde o orçamento-bomba do presidente Collor, em 1990. Manobrando com vetos à LDO 2004, o Orçamento de 2004 do governo federal descumpre agressivamente a emenda 29/2000. Pela Constituição, o SUS, por medo do Ministério da Saúde, deveria ter R$ 5,5 bilhões a mais no Orçamento federal de 2004 em relação ao de 2003. Os R$ 5 bilhões estão lá, no texto que chegou à Câmara -porém com o artifício malicioso de incluir neles R$ 3,5 bilhões referentes a ações de assistência social do Fundo de Combate e [ ] Erradicação da Pobreza, que tem por lei suas próprias fontes de financiamento.
Dessa forma, o Orçamento do Ministério da Saúde/SUS propriamente dito, em 2004, descontada a inflação, será menor do que o de 2003.
Será que não existe lei neste país?
Para tal atitude contra o povo, eu só encontro uma explicação: a elite brasileira continua ignorando e desprezando o que o SUS representa e representará no país.
Eduardo Jorge Martins Alves Sobrinho, 53, médico sanitarista, é coordenador da 12ª Conferência Nacional de Saúde. Foi secretário municipal da Saúde de São Paulo (administrações Luiza Erundina e Marta Suplicy).