Em decisão inédita no Brasil, o juiz Luiz Cândido de Andrade Villaça, do Juizado Especial Civil e Criminal da comarca Taipu (RN), autorizou a retirada de órgãos de um recém-nascido anencefálico para doação. A mãe da criança havia entrado com pedido de liminar para conseguir a antecipação terapêutica do parto, já que, segundo cientistas, o feto sem cérebro não tem chances de sobrevivência. Porém, a gestante voltou atrás e decidiu esperar pelo nascimento do bebê. O juiz Andrade Villaça acolheu o pedido.
Segundo a decisão, o estado do Rio Grande do Norte deverá adotar as providências necessárias para que o feto tenha os órgãos retirados assim que nasça. A data do parto não foi divulgada pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte, pois o processo corre em segredo judicial. O juiz da comarca de Taipu destacou que, embora jovem, a gestante foi madura ao escolher manter a gravidez, na expectativa de salvar outras vidas.
Villaça também disse que a atitude da mulher comprova que seu sacrifício – o de gerar por nove meses uma criança sem chance de sobrevivência – não será em vão. "Ao invés de pleitear o fim de seu sofrimento numa gestação fadada ao fracasso aparente, optou por perseguir o intuito de salvar a vida de outras pessoas, necessitadas da vida orgânica do seu feto sem possibilidade de vida após o nascimento", fundamentou, na decisão.
O juiz citou o "Evangelho segundo o Espiritismo" para justificar sua decisão: "O amor resume a doutrina de Jesus toda inteira, visto que esse é o sentimento por excelência, e os sentimentos são os instintos elevados à altura do progresso feito. Em sua origem, o homem só tem instintos; quando mais avançado e corrompido, só tem sensações; quando instruído e depurado, tem sentimentos (…). A lei de amor substitui a personalidade pela fusão dos seres".
Dificuldades
A antropóloga Débora Diniz, especialista em bioética, sustenta, contudo, que são mínimas as chances de os órgãos do recém-nascido serem aproveitados. Como na maioria dos países que têm tecnologia científica de ponta, as mulheres são autorizadas pela Justiça a antecipar o parto, não existem relatos científicos de transplantes de órgãos doados por fetos sem cérebro. "A eficácia do transplante também é duvidosa porque geralmente a anencefalia vem acompanhada de má-formação, o que diminui a qualidade dos órgãos", diz.
Outro ponto, diz Débora, é que os órgãos de um recém-nascido são muito pequenos, incompatíveis com um bebê com mais de 2 meses de idade. A não ser que acabe de nascer outra criança e, em questão de horas, os médicos descubram que ela precisa de um transplante, os órgãos do feto anencefálico não poderão ser utilizados.
"Uma decisão como essa cria a falsa ideologia de solidariedade, já que não há experiência de sucesso nesses casos. Não se pode iludir as mulheres", diz a antropóloga. "Por outro lado, é o exercício de democracia. Aceitar que a gestante interrompa a gestação não significa obrigar que todas o façam", lembra. Para Débora Diniz, o fato de o juiz ter autorizado a retirada dos órgãos no momento do nascimento da criança – e não após sua morte – é mais uma comprovação de que o anencefálico é um natimorto.