Com um profundo sentimento de navegar contra a corrente, defendo aqui a idéia de que precisamos, mais do que apenas defender o nosso sistema de saúde, arejar o debate sobre ele, tendo como referência o que disse Nelson Rodrigues sobre as unanimidades, fazendo também valer a velha máxima socrática de questionar as verdades estabelecidas, principalmente as previsíveis e repetidas sem crítica. Pois que a discussão corrente é pobre, polarizada. De um lado, os que atacam a idéia-matriz do Sistema Único de Saúde (SUS), clamando na melhor das hipóteses por sua aplicação apenas aos segmentos mais pobres. De outro, os que não aceitam quaisquer mudanças nos rumos do sistema.
Penso que é preciso, sim, ultrapassar certos limites, mesmo alguns dos impostos pelo arcabouço legal e normativo legado pela Constituição de 1988. Sei que buscar caminhos novos, romper com crenças e dogmas constitui dilema histórico que o senso comum prefere não enfrentar. Galileu que o diga…
Em primeiro lugar, o financiamento. A ortodoxia fiscal tem curso histórico no Brasil, independentemente do matiz ideológico dos governantes e não concede espaço para ilusões. O negócio do governo, de todos os governos, não tem sido outro senão o de promover o ajuste das contas públicas. A saúde, área dita "gastadeira", sempre buscou a vinculação dos recursos, conquistada na Emenda Constitucional 29, mas não regulamentada até o momento.
É bom perguntar, ainda de modo socrático: será que é regulamentável? Se tudo fosse efetivamente vinculado nos orçamentos públicos, lembram os economistas, a soma das partes poderia ser bem superior ao todo. Será que na saúde é diferente? O fato é que orçamentos públicos não são somente fruto de decisão política, mas de pura aritmética, também.
Nas relações entre esferas de governo, ou seja, na descentralização, um princípio basilar do SUS, a situação não é melhor, pois os recursos são limitados e em todos os níveis são patentes as tendências de escape às responsabilidades previstas na Emenda Constitucional 29. Transferem-se responsabilidades, mas com razão perguntariam os governadores e prefeitos: e o dinheiro, quando aumentará?
O grande problema, entretanto, é o mote habitual da defesa do SUS: oferecer tudo para todos. Mais um problema: os mais ricos adquirem privilégios toda vez que se incrementa a prestação de serviços no sistema, principalmente dos mais onerosos e mais complexos. Sócrates (ainda o filósofo grego) gostaria de saber: o que vem a ser tudo e quem são todos? Sejamos realistas: nenhum sistema mundial de saúde oferece (ofereceu, ou oferecerá) benefícios de tal ordem. A dimensão da oferta dependerá, sempre, dos recursos disponíveis, não de uma perversa regra neoliberal, do FMI ou de qualquer equipe econômica. Pode ser só uma questão aritmética.
Não se deve esquecer o fato notório, que não deixa de ser confortador, de que no Brasil, em anos recentes, a disputa por recursos nas áreas sociais é muito grande e vem aumentando, dadas as dezenas de auxílios, benefícios e bolsas variadas originários das caixas do Tesouro Nacional e da Seguridade Social.
Resumindo, fazer o pouco ser o bastante para o tudo e para atender a todos é coisa que ainda não se descobriu no campo das políticas públicas. A exclusão social merece tratamento diferenciado, indicando a substituição do "tudo para todos" pelo "mais para quem precisa mais". Nesse aspecto, o Programa Bolsa Família, uma política que nem de longe pretende dar tudo para todos, poderia trazer lições importantes.
É preciso discutir com a sociedade o estabelecimento de certas barreiras ao consumo desenfreado em saúde, introduzindo, por exemplo, pacotes de serviços que incluam medidas para o usufruto de todos, indistintamente, mas também, nos níveis mais altos de complexidade pelo menos, isenção de complementação financeira somente para as pessoas de baixa renda.
Ou seja, complementação das despesas de saúde de forma proporcional à renda dos usuários associada ao estímulo ao associativismo e à autogestão para a produção das ações mais complexas. Boa referência nesse caso é a Farmácia Popular do Brasil, do atual governo, programa de complementação de custo por parte do usuário, muito criticado pela intelectualidade da saúde, embora bem aceito pela população. O que não se pode mais aceitar é o SUS navegar no mar de exceções. E as exceções, como se sabe, sempre privilegiam os que dispõem de recursos financeiros, educacionais, informativos para o bem saber das coisas.
Flavio Goulart – Doutor em saúde pública, é professor aposentado da Universidade de Brasília (UnB)