A morte do jogador Paulo Sérgio de Oliveira Silva, o Serginho, zagueiro do São Caetano, poderia ter sido evitada se houvesse em campo um aparelho chamado desfibrilador semi-automático, próprio para o atendimento de emergências cardíacas. Pequeno, leve e de fácil manuseio, o desfibrilador, quando usado com presteza, aumenta em até 70% as chances de salvamento das vítimas de problemas como o de Serginho. O jogador caiu fulminado por uma parada cardiorrespiratória súbita, causada pelo tipo mais severo de arritmia na freqüência cardíaca – fibrilação ventricular, em linguagem técnica. Isso significa que, naquele jogo fatídico contra o São Paulo, o coração de Serginho começou a tremer num ritmo tão intenso que não conseguia completar um batimento. O resultado foi o comprometimento da irrigação sanguínea e, por fim, o colapso transmitido ao vivo pela televisão. Em tais situações, a corrida é contra o tempo. Quanto mais rápido for o atendimento, menores são os riscos de o músculo cardíaco (e o resto do organismo) sofrer as seqüelas decorrentes da falta de sangue. Desde o momento da parada, a cada sessenta segundos as chances de salvamento caem cerca de 10%. Por isso, o uso do desfibrilador é essencial nos primeiros instantes da parada cardiorrespiratória. Ao disparar choques elétricos cuja intensidade pode chegar a 360 joules – o equivalente ao impacto no peito de uma bolada de 150 quilômetros por hora -, a máquina faz com que o coração volte a bater em seu ritmo normal.
Cerca de 160.000 pessoas morrem anualmente no Brasil vítimas de distúrbios que resultam numa parada cardiorrespiratória súbita. Delas, 95% não conseguem nem chegar ao hospital. Os cardiologistas e médicos especializados em atendimento de emergência são unânimes: se o Brasil, a exemplo do que ocorre nos Estados Unidos e em alguns países da Europa, dispusesse de uma lei federal que tornasse obrigatória a instalação de desfibriladores semi-automáticos em locais públicos, muitas dessas vidas poderiam ser salvas. As únicas cidades que têm uma legislação específica sobre o assunto são Curitiba e Londrina, ambas no Paraná. “O desfibrilador é como um extintor de incêndio: todo mundo torce para que nunca precise usá-lo, mas ele tem de estar lá”, diz o cardiologista Sergio Timerman, presidente da Fundação Interamericana do Coração. No Aeroporto Internacional de Chicago, essa não é uma metáfora. Há dezenas de desfibriladores espalhados por suas dependências, e as caixas em que eles estão colocados se assemelham às dos extintores. Os aparelhos foram dispostos de tal forma que se uma pessoa passa mal, não importa o ponto do aeroporto em que ela esteja, há um desfibrilador a, no máximo, um minuto de distância – tempo que um adulto leva para percorrer, num terreno plano e a passos largos, 75 metros. No momento em que a caixa que guarda a máquina é aberta, um alarme soa na central de urgências médicas e a equipe de salvamento corre em socorro do paciente. Desde que o sistema foi implantado, em 1998, as taxas de mortalidade por parada cardiorrespiratória nas dependências do aeroporto de Chicago foram reduzidas pela metade.
Até meados da década de 90, os desfibriladores eram equipamentos de uso exclusivamente hospitalar. Com o avanço da tecnologia, foram desenvolvidas máquinas menores, fáceis de transportar e, sobretudo, de utilizar. Em setembro passado, a agência americana de controle de remédios e alimentos, a FDA, autorizou a venda de desfibriladores em farmácias e grandes redes de supermercado. Assim que o estojo do desfibrilador é aberto, um comando de voz indica passo a passo o que fazer. Primeiro a máquina analisa a atividade cardíaca da vítima. Se não for detectada uma fibrilação, o comando de voz desaconselha o uso do aparelho. Do contrário, a pessoa é instruída a acionar o botão que dispara o choque no coração (veja quadro). Os americanos compram, em média, 35.000 desfibriladores desse tipo por ano. No Brasil, as vendas anuais não ultrapassam as 100 unidades – cada uma sai por 12.000 reais, em média. A maioria das máquinas foi adquirida por clubes recreativos, condomínios residenciais, empresas de grande porte (geralmente multinacionais), companhias aéreas e times de futebol, como o Corinthians e o Palmeiras. Na semana seguinte à tragédia no Estádio do Morumbi, o São Paulo comprou uma. Os porta-vozes do São Caetano, o time de Serginho, dizem que só incluirão o desfibrilador semi-automático no kit de primeiros socorros do time se a Confederação Brasileira de Futebol assim determinar. Pois é. Entre as pessoas físicas, pode-se contar nos dedos o número de proprietários de um desfibrilador. O desenhista Mauricio de Sousa é um deles. O seu aparelho é mantido no escritório, à disposição dos 300 funcionários que lá trabalham. O publicitário Nizan Guanaes guarda o seu no carro.
O advogado paulista Wanderley Lazareth, de 56 anos, sabe por experiência própria da importância de ter um desfibrilador à mão. Em 11 de setembro do ano passado, depois de uma partida de boliche com os amigos no Esporte Clube Pinheiros, ele começou a sentir fortes dores no peito. As mãos e os pés formigavam. Em seguida, o ar começou a faltar. A equipe médica do clube foi chamada. A caminho da maca, Lazareth deu três passos e caiu, com uma parada cardiorrespiratória. Ali mesmo, no chão, ele recebeu os choques do desfibrilador. O coração voltou a bater. Na ambulância que o levaria ao hospital, o advogado sofreu a segunda parada. A situação crítica foi contornada com novos choques. As duas paradas sofridas por Lazareth foram decorrentes de um infarto. Nem todo infarto, no entanto, resulta em parada cardiorrespiratória. Nesses casos, o tratamento de choque não resolve nada (veja quadro).
A morte de Serginho fez com que aumentasse a busca de informações sobre o aparelho. Os representantes da fabricante americana Medtronic, por exemplo, registraram um aumento de 40% no número de clientes interessados em comprar um desfibrilador. “O desfibrilador é importante, mas não pode se transformar numa neurose a ponto de cada um querer ter o seu”, diz o médico Milton Glezer, do Hospital das Clínicas de São Paulo. Estudos da Associação Americana do Coração indicam que o ideal é que haja desfibriladores disponíveis em lugares com grande concentração de gente, na proporção de um aparelho para cada 2.000 pessoas. Trata-se da melhor relação custo-benefício, visto que, numa concentração desse porte, o risco de ocorrência de um problema cardiorrespiratório é de um a cada três anos e oito meses. É nesse cálculo que se baseia a maioria das legislações sobre a obrigatoriedade de desfibriladores em locais públicos – inclusive o projeto de lei que, desde o ano passado, está parado no Congresso brasileiro.
É essencial que, além do desfibrilador, esses locais contem com uma equipe de funcionários treinada para atender casos de parada cardiorrespiratória súbita. Um shopping center, por exemplo, poderia adestrar seus seguranças. Em quatro horas, em média, é possível aprender como reconhecer um distúrbio cardiorrespiratório e quais as manobras que devem ser executadas enquanto o desfibrilador não é acionado ou caso ele não surta efeito, como a massagem cardíaca e a respiração boca a boca. É importante frisar que essas medidas não têm o poder de reverter por completo uma fibrilação. Elas apenas mantêm a circulação e a oxigenação do coração até a chegada de um socorro mais especializado.
Salvamento químico
Photodisc
QUANDO OS CHOQUES FALHAM…
…adrenalina na veia passa a ser muito mais do que uma simples expressão
O desfibrilador é a arma mais eficaz para reverter uma parada cardiorrespiratória súbita. Há casos, no entanto, em que os choques elétricos disparados pelo aparelho não conseguem fazer o coração voltar ao seu ritmo normal. Se, depois de três choques consecutivos, o quadro não for revertido, deve-se partir para o uso de remédios cuja função é facilitar o processo de desfibrilação por novos choques. Os protocolos internacionais recomendam que a primeira opção seja por substâncias vasoconstritoras, como a adrenalina. Isso porque, durante a fibrilação, a pressão arterial vai a zero. Injetados na veia do paciente, esses remédios promovem a contração das artérias e, com isso, elevam a pressão, o que facilita o fluxo do sangue rumo ao músculo cardíaco. Ao contrário do que muita gente imagina, o dinitrato de isossorbida, cuja marca mais famosa é o Isordil, não deve ser usado em casos de infarto com parada cardiorrespiratória. O motivo: ele é um vasodilatador de efeito instantâneo. Outro remédio de que os médicos lançam mão em emergências é a amiodarona. No mercado brasileiro há mais de quarenta anos, sob a forma de comprimidos, ela é indicada para o controle de arritmias cardíacas, angina do peito e taquicardia grave. Numa parada cardiorrespiratória, a amiodarona é usada em sua versão injetável. A substância age diretamente nas células cardíacas, tentando normalizar os impulsos elétricos responsáveis pelos batimentos do coração. O futuro imediato aponta para o uso de trombolíticos na reversão de paradas cardiorrespiratórias. Sintetizados na década de 70, eles são originalmente indicados para a dissolução de coágulos que levam ao infarto. O seu mecanismo de ação na desfibrilação cardíaca ainda não foi desvendado. No entanto, segundo estudos apresentados no congresso da Associação Americana do Coração, na semana passada, em Nova Orleans, os trombolíticos têm se mostrado eficazes em 68% dos casos.