Todas as percepções são verdadeiras. Tendemos a enxergar o que pensamos previamente e, de acordo com esta conduta mental, vemos o mundo sob uma ótica parcial. No campo das políticas sociais, a eficiência se apresenta na capacidade de integrar visões para o bem comum. Este é o desafio.
A atual “crise” do setor de planos de saúde requer de seus integrantes uma reflexão integrada e sistêmica do assunto. São cinco os principais “agentes” deste sistema: os profissionais de saúde em regime de trabalho liberal, os estabelecimentos de serviços privados (hospitais, consultórios privados, clínicas especializadas, laboratórios), a população (os usuários, compradores de serviços ou beneficiários), e as instituições gestoras (empresas que promovem a saúde) e as reguladoras (organizações que impõem um marco legal para alinhar interesses diversos).
Os profissionais de saúde têm um papel central neste sistema. Sua percepção, de forma resumida, é negativa e refere-se à má remuneração pelo trabalho, falta de autonomia na relação médico-paciente, e conseqüente queda na qualidade de seu serviço.
A percepção dos estabelecimentos privados (hospitais, clínicas etc.) é de que seus custos são cada vez maiores, devido à necessidade de incorporação de novas tecnologias (máquinas e medicamentos), ficando cada vez mais difícil financiar esses investimentos e, por conseguinte, garantir a contínua qualidade do serviço. A população, por sua vez, se queixa de que plano de saúde é muito caro e, não raro, demonstra não entender claramente quais são as “regras” dos contratos. Sentem-se vulneráveis e parecem assistir a um filme estrangeiro, sem legendas. Por mais que se esforcem, se não são bilíngües, sempre acabam por perder partes importantes para entender corretamente o sentido da história. As instituições “gestoras”, os planos de saúde, se queixam por não sustentar os crescentes índices de sinistralidade, não suportar as regras cada vez mais cerceadoras da agência reguladora (ANS) e pelo fato de seus custos não serem repassados aos compradores, devido ao controle de preços, também imposto pela ANS.
Por certo, a visão de cada “agente” é verdadeira. Porém, tratando-se de uma política social, o interesse comum, neste caso, seria um sistema de promoção de saúde, onde os diversos “elos” se integrassem e formassem, de fato, uma corrente que garantisse mais segurança no campo da cura de doenças e na diminuição do risco de enfermar-se. Mas, se observarmos o que há de comum nas “queixas”, verificamos que se trata de uma aparente “crise de financiamento” com causas múltiplas e complexas.
O recente passado dos planos de saúde no Brasil (últimos 40 anos) revela a necessidade de passar por uma crítica geral do sistema e, em especial, das relações estabelecidas entre as operadoras, também chamadas de convênios, os médicos e, por fim, os hospitais e clínicas privadas. A história da atividade médica nos principais centros urbanos do nosso país sempre esteve associada com a prática liberal em consultórios privados. Com base no seu saber e influência social, os médicos cativavam sua clientela de elite. Particularmente no caso carioca, o laço institucional que mantinham para continuar evoluindo em suas práticas profissionais eram os hospitais públicos, que, pelo fato de o Rio de Janeiro ter sido capital federal, constituíam, nos anos 50 e 60, um cobiçado privilégio para a classe médica da cidade. Via de regra, quando fosse necessária uma intervenção hospitalar mais complexa para seus clientes particulares, estes próprios médicos asseguravam o acesso e os recursos necessários para o tratamento de sua clientela, visto que, ao mesmo tempo em que trabalhavam em seus consultórios privados, também eram integrantes do staff dos grandes e renomados hospitais públicos.
O mercado, por sua vez, que sempre reage mediante oportunidades, vislumbrou a possibilidade da criação de um novo “negócio” capaz de acelerar e conseqüentemente gerar condições para o crescimento daquela prática que, invariavelmente, trazia satisfação para os seus “compradores” (clientes). Foi com este cenário que surgiram, então, algumas organizações especializadas em vendas e marketing que, diferentemente do modelo de medicina de grupo, foram chamadas de planos de saúde. Elas assumiram a função de cativar clientes, os quais passariam a ser “entregues” aos médicos. A única exigência, diante dessa realidade, passou a ser o credenciamento a estas empresas e o comprometimento de apenas prestar seus habituais serviços, baseados no saber, na competência, no conhecimento e nada mais. As casas de saúde e clínicas privadas também poderiam se beneficiar deste novo complexo de relações, ao abrir suas portas com segurança para os médicos. Eles, por sua vez, não precisariam garantir o risco de inadimplência de suas clientelas, porque estas mesmas “organizações”, voltadas agora para a captação de clientes, também pagariam a conta do hospital.
Pareceria tudo perfeito se, em economia, não existisse o conceito de saturação de mercado.
Todos os mercados tendem a saturar, porque atraem mais negócio numa escala de rendimento crescente até o ponto em que, pelo aumento da atividade mais além do sustentável, estes mesmos rendimentos tendem a decrescer marginalmente.
Este negócio, então, cresceu muito em 10 anos e chegou a registrar a cifra de quase 40 milhões de brasileiros com acesso à prática liberal da medicina. O que era considerado privilégio da elite nas décadas anteriores aos anos 60, agora passava a ser um benefício garantido para a quase totalidade dos trabalhadores empregados no mercado formal e informal.
Como a economia não tem identidade e se rege por interesses – que podem ser aproveitados livremente – aconteceu o naturalmente explicável, apesar de totalmente indesejável: enquanto o mercado de compradores saturava-se, a atraente e bem-sucedida idéia daqueles “organizadores que tinham um plano para a saúde das pessoas” começou a atrair cada vez mais empreendedores.
Hoje, são mais de 3.000 operadoras de planos de saúde, espalhadas por todo o país, a oferecer serviços para uma população cujo volume decresceu nos últimos seis anos daquele pico de 40 milhões para cerca de 30 milhões de associados. A montagem do negócio, em algum lugar no passado, interessou a todos os agentes. A atual crise de financiamento decorre, provavelmente, da falta de capacidade e motivação para juntar os elos da corrente que promoverá saúde na medida em todos se disponham a rever seus “modelos mentais” e procurem usar seus recursos e conhecimentos como fator de agregação de valor e não de ganhos individuais.
Aí, sim, poderíamos dar os primeiros passos em direção a uma efetiva política social.
*Economista especializada em Planejamento e Gestão de Saúde