A corajosa resolução do Conselho Federal de Medicina de autorizar a suspensão de procedimentos que prolongam agonias insolúveis, se consentida pela família do paciente terminal, não mereceu a atenção devida pelo governo, particularmente pelo Ministério da Saúde, a um assunto que reúne importância humanitária e precariedade legal. Em contraste com a CNBB, dos bispos brasileiros, que deram à resolução apoio imediato, o Ministério da Saúde limitou-se à vaguidão de um hipotético e futuro grupo para discutir os vários aspectos da resolução -e eventualmente concluir alguma coisa.
Há, porém, mais de uma razão para urgência, por mais que violente o ritmo paquidérmico que o Ministério da Saúde tem como tradição (por falar nisso, a dengue de verão já começou; a atividade preventiva do ministério, não).
Há um número ignorado, mas por certo muito alto, de pessoas submetidas a providências e sofrimentos inúteis de sobrevida praticamente artificial, pacientes para os quais a medicina não pode oferecer mais do que isso mesmo. O final prolongadamente penoso que todos tememos e, em sadia consciência, a ninguém desejamos.
A possibilidade de evitar tais sofrimentos, a pacientes e a suas famílias, já exigiria ação pronta do governo. A par da lerdeza ou desatenção, no entanto, o governo agrava sua respon sabilidade por lhe caberem as medidas preliminares para proteger de problemas legais, talvez graves, médicos e familiares passíveis da ação de advogados e parentes inescrupulosos. Da Ordem dos Advogados do Brasil-SP partiu, em vez de uma contribuição esclarecedora da diferença essencial entre eutanásia e a resolução do Conselho Federal de Medicina, uma advertência ameaçadora aos médicos e familiares de pacientes terminais: não estender o que reste de vida, mesmo que para poupar sofrimentos insolúveis, pode sujeitar a processos criminais.
O governo deve a decisão sobre o seu propósito de desobstruir, ou não, a via para a prática tranqüila da resolução do Conselho de Medicina. Se positiva, a decisão precisará resultar no encaminhamento dos meios mais rápidos de proporcionar segurança a médicos e familiares confrontados com o sofrimento inútil de pacientes.
É notório que muitos médicos, por convicção humanitária e outras, já praticam o que agora se torna resolução. É provável que muitos outros decidam praticá-la, uma vez amparados pela resolução proveniente de estudos do seu Conselho. Como o assunto suscitou a possibilidade de processos e, com isso, por certo animou inescrupulosos caçadores de causas judiciais, é premente a orientação sobre quando e como os médicos e familiares podem proteger-se, inclusive documentalmente, nas aplicações da resolução.
Seja o que digam as leis atuais e representantes desta ou daquela seção da OAB, e seja o que o governo decida ou nem decida, uma certeza se tem desde sempre: a medicina não inclui, entre suas finalidades, os sofrimentos inúteis. Quem deseje preservá-los, deve inscrevê-los sob outro nome que não o de medicina.