Saúde é um assunto que consegue desagradar a todos na cadeia de negócios em qualquer parte do mundo. Particularmente no Brasil, os consumidores reclamam do preço e dos serviços prestados, que, em algumas situações, são tão precários quanto o oferecido pelo governo através do Sistema Único de Saúde (SUS). Médicos, laboratórios e hospitais alegam que as operadoras de saúde são impiedosas na negociação de preço. As companhias, por sua vez, dizem que o governo tirou delas a principal prerrogativa de uma empresa privada, que é negociar o preço de seus produtos.
Enquanto a Agência Nacional de Saúde (ANS) prepara a divulgação do índice de reajuste de preço dos planos individuais para o final deste mês, a iniciativa privada corre nos bastidores do governo. Cerca de 44,7 milhões de pessoas são atendidas pela saúde privada. Desse total, 23% têm planos individuais e serão afetados pelo reajuste.
"A tentativa do governo é preservar o consumidor, mas ele tem sido deixado sem cobertura", diz José Cechin, ex-ministro da Previdência Social, hoje superintendente do Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (IESS). Entre as seguradoras, por exemplo, nenhuma das 10 que atuam em saúde vende planos individuais.
Cechin concorda que o assunto é uma bomba atômica. O governo entende que a inflação médica cresce em ritmo mais acelerado do que a do índice geral de preços. "Isso não é um privilégio do Brasil. Acontece em todo o mundo." O governo sabe que pode comprometer a saúde financeira das empresas com o descasamento de receitas e despesas. E também que o bolso do consumidor é sensível e quase não suporta reajustes.
O assunto despertou o interesse de Cechin, que aceitou o desafio de comandar o IESS, entidade sem fins lucrativos que tem como objetivo realizar estudos sobre saúde complementar. O mais recente, "Variação dos Custos Médicos e Hospitalares de Operadoras de Planos de Saúde", foi apresentado nesta semana a representantes do governo. A análise mostra por que o reajuste dos planos de saúde precisa ser praticamente quase três vezes maior do que a inflação: o IPCA acumulou alta de 3,7% entre outubro de 2005 e setembro de 2006, enquanto a variação dos custos médicos no período foi de 11,91%, com base em estudo de 1,5 milhão de beneficiários de planos individuais. A expectativa de executivos do setor é de que o reajuste para planos individuais fique em torno de 8%.
O estudo utilizou dados da Amil, Bradesco Saúde, Golden Cross, Medial Saúde e SulAmérica Saúde. "Para medirmos os índices de variação dos custos médicos hospitalares contratamos a Towers Perrin", contou Cechin.
O reajuste dos planos individuais é definido pela ANS com base na variação média das mensalidades praticadas nos contratos coletivos, livremente negociado entre as partes, em um período de doze meses. O economista argumenta que as seguradoras e seus clientes empresariais podem mudar o desenho dos planos para conseguir um reajuste menor e só isso já torna o método ruim para aplicar o mesmo índice no plano individual, que não pode ser alterado em razão da Lei.
Nos planos corporativos é possível colocar uma franquia para o uso de consultas e exames, limitar a inclusão de agregados e reduzir a rede conveniada. "A solvência das operadoras e a proteção dos consumidores depende de um índice de reajuste das mensalidades que espelhe o crescimento dos custos assistenciais", explica Cechin.
O estudo cita o avanço da tecnologia; novos protocolos de tratamentos; aumento do custo de materiais e medicamentos; envelhecimento da população; e as liminares para coberturas de eventos não cobertos contratualmente. "É a chamada inflação médica", diz Cechin. Na Alemanha, por exemplo, enquanto o índice de inflação evoluiu 3,64% entre 2002 a 2004, o custo médico cresceu 10,36%. Nos EUA, a relação foi de 7,79% e 48,11%. Na Suíça, 1,3% e 24%. No Brasil, 31,55% e 43,61%.
O estudo cita a artroscopia (cirurgia de joelho), com variação de preço de 328% no período de cinco anos. A angioplastia aumentou 278% no mesmo período. No item de tratamento ambularial, o destaque ficou com o câncer de mama, com aumento de 8.547% no período de cinco anos.
Além de mostrar a necessidade de um índice médico e não de inflação, o estudo defende um índice individualizado, por tipo de plano, perfil etário, distribuição geográfica. "Um índice único facilita a divulgação aos usuários, mas pode trazer mais desequilíbrios do que benefícios ao sistema." De acordo com o estudo, a variação dos custos para as seguradoras foi de 12,95% no período e para as empresas de medicina de grupo de 10,16%.
Executivos lembram o caso da Transbrasil. O governo limitou o reajuste de preço das tarifas aéreas entre 1985 a 1992 e gerou um sério problema para o setor. A Transbrasil venceu o processo judicial contra o governo com indenização de R$ 1 bilhão. E há também a Varig, que pode receber R$ 7 bilhões. Vasp e Tam também têm ações na Justiça. Isso abre precedente a qualquer outra empresa que tenha tido prejuízo com o tabelamento de preços do governo.
Não foi à toa que o governo apelou para uma regulamentação tão engessada com a Lei 9.656, de 1998. Naquela época, a maior fatia do lucro das seguradoras que operavam com saúde vinha deste segmento, até então sem regulamentação. Saúde era também o campeão em reclamações nos órgãos de defesa do consumidor pelos abusos cometidos por várias empresas. "A regulamentação foi necessária. Mas certamente precisa de ajustes, pois da forma como está inviabiliza o bom funcionamento do setor", afirma José Cechin.