Se o céu e o inferno tivessem ouvidorias, os mortos já teriam feito uma greve contra o sofrimento a que foram submetidos
A palavra “eutanásia” voltou ao vocabulário do povo, que assistiu ao “espetáculo” provocado pelo caso Terri Schiavo, um dentre milhares que ocorrem todos os anos no mundo, inclusive no Brasil. Esse caso, contudo, tomou a mídia por razões políticas e não pela sua natureza clínica. A consciência pesada do governo, responsável pelo genocídio de iraquianos, americanos e estrangeiros de todos os lados, usou e abusou dessa tragédia familiar como ato de contrição.
Mas o Poder Judiciário deixou claro que não estava disposto a ceder sua credibilidade, e, o mais importante, sua independência, às relações impróprias do Congresso com a Casa Branca. E se posicionou conforme o precedente do caso Nancy Cruzan, garantindo o direito de autonomia da paciente: direito de não ter o adiamento de sua morte.
Lamentável, contudo, que se dê o rótulo de “eutanásia” a um procedimento clínico que não é uma verdadeira eutanásia. Melhor até que fosse. Mas o espetáculo não podia morrer; a catarse do fundamentalismo necessitava de tempo para causar na comunidade em geral um sentimento de oposição à forma de tratamento dado à silenciosa vítima. Vítima de um mundo de inconveniências e hipocrisias, muitas delas criadas por concepções religiosas, onde viver, sofrer e morrer são tidas como fases compulsórias da existência humana. Se o céu e o inferno tivessem ouvidorias, os mortos já teriam feito uma greve contra o sofrimento a que foram submetidos. Como não me consta a existência desse serviço, cabe a nós, candidatos a esse rito de passagem, tomar algumas medidas que assegurem a cada um, no exercício do seu direito sobre o seu corpo, a escolha da morte oportuna. Não respeitar esse direito é constrangimento ilegal, podendo ser abuso de autoridade qualificado pela tortura.
Eutanásia é a morte antecipada, normalmente por medicação. Diz-se nos últimos dias que o filme “Mar Adentro”, baseado na história do espanhol Ramón Sampedro, 55, trata de um caso de eutanásia. Há um engano. O filme conta a história verdadeira de um auxílio a suicídio, crime previsto no artigo 123 do Código Penal Brasileiro. Ramón Sampedro ficou paraplégico de 23 de agosto de 1968 a 12 de janeiro de 1998, quando foi encontrado morto. Durante esses 29 anos, lutou pelo direito de obter sua liberdade, aprisionada num corpo morto, dizia ele. Pediu, escreveu cartas, falou, deu entrevistas. Em 1995, pediu a um juiz que permitisse a um médico lhe dar a substância necessária para morrer, sem o risco de ser processado por homicídio – o pedido foi recusado em várias instâncias, incluindo o Tribunal Constitucional. Seu desejo também não foi reconhecido pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos, nem, por fim, pelo Comitê de Direitos Humanos da ONU, que acabou negando o pedido quando Ramón já estava morto.
Ramón Sampedro queria ter o direito de ser eutanatizado, ou seja, de receber das mãos de um terceiro, um médico de preferência, uma ou duas injeções letais.
Sem sucesso pelas vias legais, conseguiu formar uma rede de pessoas dispostas a ajudá-lo a suicidar-se, dentre elas, membros da Associação Direito a Morrer Dignamente (DMD), de Barcelona. Mas foi Ramona Maneiro, sua namorada, quem lhe prestou a última ajuda. Morreu vítima de um suicídio assistido, que não se deve confundir com eutanásia.
Mas há um caso de eutanásia nos cinemas. Em “Menina de Ouro”, uma lutadora de boxe (Hillary Swank) sofre um traumatismo raquimedular e fica paralítica. Indignada como Ramón Sampedro, pede ao seu treinador (Clint Eastwood) que lhe aplique o “soro da morte digna”.
Nos dois filmes (e na vida real de Ramón Sampedro), os pacientes estavam lúcidos, não tinham doenças terminais. Estavam imobilizados fisicamente. Mas com uma mente sã: Mens sana in corpore insano, é o que diziam os romanos.
Diferente de tudo isso é a chamada “Suspensão de Esforço Terapêutico – SET”. Nesse caso, pacientes em estado vegetativo persistente ou em fase terminal de doenças incuráveis, autorizam a suspensão de tratamentos fúteis, que visam apenas adiar a morte em vez de manter a vida. A SET põe fim ao encarniçamento terapêutico, à teimosia em se adiar a morte, como se isso fosse bom e possível para sempre. Com a evolução das tecnologias médicas, a cada dia há mais meios para se manter esse encarniçamento, que não é terapêutica porque não cura. Apenas dá suporte a atividades vitais primárias e pode deixar vivo, por anos e à custa de sofrimento, alguém que está clinicamente terminado. Na SET o paciente não morre de uma dose de cloreto de potássio ou de adrenalina. Morre da própria doença, da falência da vida, que só é eterna na visão romântica de algumas religiões.
A suspensão do esforço terapêutico tem, entretanto, uma dificuldade que pode ser intransponível: necessita de uma manifestação de vontade do paciente, que, na maioria dos casos, deve ser feita antes da perda da sua capacidade civil. Para que isso seja possível, três alternativas se apresentam. A primeira, uma escritura pública feita em cartório, na qual o paciente declara não aceitar o encarniçamento terapêutico. Não aceita ser mantido vivo por aparelhos, especificando, ainda, que tipo de tratamento aceita. A segunda, uma declaração escrita em documento particular, numa simples folha de papel assinada, de preferência com firma reconhecida. Nesses dois casos temos os “testamentos vitais”, também chamados “living will” “disposiciones antecipadas”, “testamentos biologicos” ou “testament de vie”. É evidente que, em qualquer dos sistemas onde estão vigentes, inclusive no Brasil, os testamentos vitais não têm os requisitos de um testamento tradicional (a ser cumprido após a morte). Ao contrário destes, devem ser mantidos abertos, ao conhecimento da família, dos médicos ou de terceiro, a quem o paciente pode nomear para tomar, nessas matérias, decisões não incluídas no testamento.
Finalmente, há uma solução para quem não teve oportunidade de fazer um testamento vital, mas que disse a amigos que rejeitaria o esforço terapêutico em caso estado vegetativo persistente ou de doença terminal. Nesse caso, é necessário reproduzir prova válida dessa vontade do paciente, o que demandaria processos judiciais longos, como ocorreu com Nancy Cruzan e Terri Schiavo.
No Brasil, não há autorização legal para a eutanásia nem para o suicídio assistido. Mas a suspensão de esforço terapêutico está autorizada na Constituição, na Lei Orgânica da Saúde (Lei n. 8080/90, artigo 7.º, III), que reconhece o direito à autonomia do paciente, e no Código de Ética Médica, que proíbe o médico de realizar procedimentos terapêuticos contra a vontade do paciente, fora dos casos de emergência de salvação, o que não é o caso desses pacientes, com quadros irreversíveis.
Há, ainda, uma lei excepcional sobre esse tema. A Lei dos Direitos dos Usuários dos Serviços de Saúde do Estado de São Paulo (Lei 10.241/99) que diz: artigo 2.º – “São direitos dos usuários dos serviços de saúde no Estado de São Paulo: XXIII – recusar tratamentos dolorosos ou extraordinários para tentar prolongar a vida”. E o paciente recusa o tratamento, quando fica inconsciente, por meio de um testamento vital, símbolo da sua autonomia, da titularidade sobre o seu corpo e o seu destino.
O caso de Terri Schiavo trouxe, contudo, um outro ponto a ser repensado. Não é ético, nos casos de suspensão de esforço terapêutico, manter a via-crúcis do paciente até a parada cardiorrespiratória, como se viu, pode durar mais de 13 dias.
A Morte Digna também é um direito humano. Por sinal, é mais do que humano. É tudo o que já consta, humanamente, da Lei de Proteção aos Animais. Mudemos a lei, ou façamos uma revolução dos bichos.
Diaulas Ribeiro Promotor de Justiça, pós-doutor em Direito e Medicina