9 de junho foi o último dia de prazo para contribuintes reivindicar os últimos 10 anos
Até há pouco, o prazo para recuperação de tributos pagos indevidamente (por erro de cálculo, inconstitucionalidade de lei, entre os principais casos) era, na prática, de dez anos. Isso, em virtude de jurisprudência consolidada pelo Superior Tribunal de Justiça, que, ao interpretar de forma conjugada os arts. 150, par. 1º, e 168, I, do CTN, estabeleceu o critério conhecido como “5 + 5”, quer dizer: nos tributos, que são quase todos (IRPJ, IRPF, ICMS, ISS, PIS, COFINS, IPI, contribuição previdenciária sobre a folha, entre os principais), em que cabe ao contribuinte proceder ao recolhimento antecipado do valor devido, independentemente de lançamento, o prazo prescricional, de cinco anos, começaria a fluir apenas após o transcurso do prazo estipulado para a Fazenda homologar, expressa ou tacitamente, o valor pago, também de cinco anos.
Porém, com a Lei Complementar 118, de 9 de fevereiro de 2005, o Fisco, entre outras providências (algumas elogiáveis, voltadas a adequar o Código Tributário ao novo regime falimentar), buscou corrigir o que, a seu ver, seria um equívoco do Judiciário, especialmente do Superior Tribunal de Justiça – STJ, na compreensão dos preceitos referidos. Para tanto, dispôs, no seu art. 3º, que “[p]ara efeito de interpretação do inciso I do art. 168 da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 – Código Tributário Nacional, a extinção do crédito tributário ocorre, no caso de tributo sujeito a lançamento por homologação, no momento do pagamento antecipado de que trata o par. 1º do art. 150 da referida Lei”. Ou seja, realizado o pagamento do tributo, a partir desse momento passaria a transcorrer o prazo prescricional para eventual repetição do indébito (com restituição ou compensação do valor pago indevidamente). Além disso, ao invocar expressamente o art. 106, I, do CTN, segundo o qual as normas de cunho interpretativo são passíveis de aplicação a atos ou fatos pretéritos, o legislador claramente pretendeu reduzir os prazos prescricionais em curso e mesmo aqueles já interrompidos pela propositura de medida judicial pelo contribuinte.
Pois bem, que o legislador complementar pode, dentro de certos limites sujeitos à razoabilidade, modificar os critérios de contagem dos prazos prescricionais, bem como os próprios prazos, quanto a isso não há dúvidas. O problema, porém, reside na tentativa de fazer essa mudança operar de forma retroativa, atingindo os prazos ainda em aberto e mesmo aqueles já interrompidos. E foi justamente isso que se fez, sob a enganosa qualificação da regra vertente como meramente “interpretativa”. Ora, quando o legislador edita uma lei, não é para interpretar o ordenamento jurídico, mas para alterá-lo, introduzindo novas regras, eliminando outras, ou efetivamente mudando o conteúdo de regras preexistentes. O art. 3º da LC 118 se enquadra na terceira hipótese, pois modifica – e não apenas interpreta – o critério de contagem do prazo prescricional. A lei dita “interpretativa” agrega algo ao ambiente legal, não se limitando a declarar o sentido do que já existe (se assim fosse, seria, no mínimo, inútil). Fixar, por lei, um sentido de norma preexistente, como obrigatório, não é, rigorosamente falando, interpretar. Assim, o art. 106, I, do CTN – que raramente foi invocado, desde o advento do Código – ou bem é inócuo (não existem normas simplesmente “interpretativas”), ou bem é inválido, na parte em que trata da aplicação retroativa, por ofensa ao princípio constitucional que protege o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Na verdade, bem faria o legislador complementar em, numa próxima reforma do CTN, eliminar o preceito, que, como tantos outros do Código, se revela inaplicável.
E a resposta do Judiciário a essa tentativa de corrigir, por meio de lei, interpretação consagrada não se fez tardar. A Corte responsável em última instância pela fixação do sentido e alcance das normas inscritas em leis federais, que é o STJ, tratou de, com rapidez inaudita, pôr cobro ao que considerou intervenção indevida no labor jurisdicional: conforme noticiado na página eletrônica daquele Tribunal, em 29 de abril do corrente, sua Primeira Seção, a quem cabe a interpretação última da legislação tributária federal, decidiu, por unanimidade, que o novo critério não poderia ser aplicado retroativamente, mas apenas a partir da entrada em vigor da LC 118, que se dará em 10 de junho de 2005 (em virtude de vacatio legis de 120 dias, a contar da publicação). A questão foi incidentalmente apreciada no julgamento dos Embargos de Divergência – EResp 327.043. Na mesma oportunidade, assentou-se que, relativamente às ações propostas até tal data, continuará sendo aplicável o critério 5 + 5. Para as ajuizadas posteriormente, é que se computará a contagem do prazo prescricional a partir do efetivo pagamento do tributo e não mais do transcurso do prazo de homologação fazendária. Desse modo, por exemplo, contribuinte que propuser demanda em 9 de junho de 2005 terá direito a recuperar valores pagos até 9 de junho de 1995; porém, se a ação for aforada no dia 10 de junho, somente serão passíveis de recuperação os valores pagos até 10 de junho de 2000. Enfim, quem deixar de reclamar restituição de tributos indevidos, dentro do marco temporal referido, perderá, de pronto, a pretensão aos valores pagos há mais de cinco anos da propositura da ação.
Ainda que essa postura do STJ tenha evitado a “morte súbita” de milhares de pretensões (inclusive as já deduzidas em Juízo), não chegou a resolver da forma mais satisfatória o problema posto. É que, como visto, o que está em jogo não é propriamente falando o prazo prescricional, mas o termo inicial de contagem desse prazo. Ora, se assim é, deveriam ser respeitadas as situações em que esse termo inicial, que é um fato jurídico, tenha se materializado antes da entrada em vigor da LC; quer dizer, se o prazo para homologação do lançamento ultimar-se até 9 de junho de 2005, a partir daí o contribuinte ainda teria cinco anos para solicitar a restituição; em se consumando depois dessa data, aí sim, prevaleceria o novo critério de contagem do prazo. Não se trata, note-se, de simples questão de técnica jurídica, mas de efetiva proteção a um direito fundamental e a um valor soberano em nosso ordenamento, que é o da segurança jurídica.
Por fim, é possível que o novo critério produza um efeito colateral benéfico ao contribuinte. Algumas decisões judiciais vinham adotando um critério similar para a contagem do prazo decadencial de lançamento do tributo pelo Fisco: decorridos cinco anos da ocorrência do fato gerador, seriam contados mais cinco anos para o lançamento do tributo, totalizando dez anos. Com frágil base legal, esse entendimento, em verdade, fundava-se no propósito de dar tratamento igualitário ao Fisco e ao contribuinte (5 + 5 para ambos). Agora, que o contribuinte foi submetido ao prazo prescricional de cinco anos, a contar do pagamento, é de se esperar que, simetricamente, o Fisco o seja ao prazo decadencial de cinco anos, a contar do fato gerador. E mais, como a irretroatividade somente se aplica para evitar gravame ao contribuinte, mas não para beneficiá-lo, nada impede que, em desfavor do Fisco, aplique-se retroativamente a contagem do prazo decadencial a partir do fato gerador.
Leonardo Sperb de Paola
professor de Direito Tributário da FAE Business School, advogado, sócio de Rivera & De Paola – Advogados Associados, doutor em Direito pela UFPR