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A lucidez e a vinculação constitucional na Saúde

SUS sobrevive porque Legislativo vinculou verbas para seu financiamento

Os 16 anos de existência do Sistema Único de Saúde (SUS) não foram isentos de embates políticos. Nos anos 90, um dos temas mais controversos foi o de seu financiamento. A crise do financiamento do SUS revelou-se mediante a insuficiência, a indefinição de recursos e a alteração da sistemática dos repasses realizados pelos governo federal aos municípios, distanciando-se do disposto nas leis infraconstitucionais ( 8.080/90 e 8.142/90).

É claro que a problemática situação financeira da área da saúde foi, e ainda é, condicionada pela lógica da política econômica. A ênfase em promover elevado superávit primário resulta numa política fiscal contracionista e em taxas de juros elevadas, constrangendo o desenvolvimento das políticas sociais, tais como a de garantir saúde para a população brasileira.

É absolutamente claro que o governo federal considera a saúde e todas as demais políticas sociais subordinadas ao cumprimento das metas junto ao FMI. Mas esse princípio, baseado na redução das despesas sociais, foi contagiando as formas de atuação das demais esferas de governo – estaduais e municipais. É também óbvio que o SUS somente sobrevive porque o Legislativo, em momento de extrema lucidez, vinculou recursos para seu financiamento nas três esferas de governo, e porque a sociedade civil tem defendido, de forma incansável, o seu cumprimento. Não fosse isso, não haveria como planejar os gastos com saúde.

O estabelecimento da vinculação – garantindo um financiamento estável – possibilita o exercício da saúde enquanto um dos direitos sociais e, nesse sentido, constitui-se naquilo que se opõe à loucura, ao desvario, à demência que o descumprimento ao gasto em saúde pode provocar em uma sociedade com tantas desigualdades como a brasileira.

Não se pode esquecer que a definição da vinculação foi resultado de um longo embate político. Na época da primeira crise de financiamento do setor, em 1993, quando o Ministério da Saúde, por conta de problemas financeiros na Previdência, foi obrigado a recorrer ao primeiro empréstimo junto ao FAT, os deputados Eduardo Jorge e Waldir Pires elaboraram a Proposta de Emenda Constitucional 169 (PEC 169) que, entre outras medidas, definia recursos vinculados para a saúde.

A partir dessa PEC, várias outras propostas foram elaboradas e discutidas no Congresso Nacional, sendo que, após sete anos – em 2000 – foi aprovada a emenda constitucional (EC) 29, que tem por finalidade a segurança jurídica (proteção constitucional) contra manipulações tecnocráticas ou outras, que tornem o direito à saúde vítima dos “ajustes” orçamentários, como daqueles praticados em governos sem compromisso com o direito à cidadania.

Para o governo federal , a saúde e as demais políticas sociais estão subordinadas às metas fixadas junto ao FMI

Apesar das resistências por parte de alguns governos, a vinculação começou rapidamente a dar resultados positivos: em 2003, por exemplo, os municípios brasileiros foram responsáveis, em média, por cerca de 94% do total da produção ambulatorial no Brasil. Em 2000, a taxa média foi de 89%. Portanto, entre 2000 e 2003, não apenas a participação dos municípios no total da produção ambulatorial aumentou, mas diminuíram as diferenças entre eles.

Em relação à origem dos recursos, entre 2000 e 2004 (estimativa), a participação dos municípios passou de 21,7% para 24,2%; a dos Estados aumentou de 18,5% para 27,0%; e a participação do governo federal caiu de 59,7% para 48,9% (dados do Ministério da Saúde). As informações do Ministério da Saúde indicam que, desde o ano de 2000, o cumprimento da EC 29 foi uma realidade junto aos municípios. Em 2000, o percentual médio destinado à saúde foi de 13,64% das receitas de impostos e transferências constitucionais. Em 2001, o percentual passou para 14,71%; em 2002, atingiu 15,97%; e, em 2003, 17,58% .

A vinculação constitucional é que torna possível executar a saúde enquanto uma política social de estado. A política de saúde, pertencente ao núcleo duro das políticas sociais, revela-se atualmente – após mais de uma década de sua implementação – um dos eixos centrais das políticas públicas contra a desigualdade social no país. A partir da vinculação dos recursos é possível garantir que, nos próximos anos, as metas do setor sejam mantidas no Plano Plurianual e na Lei de Diretrizes Orçamentárias; as dotações sejam incluídas na Lei Orçamentária Anual; e que essas não sejam contingenciadas e nem sequer deixem de ser empenhadas, assegurando o efetivo pagamento.

Em tempos de restrição fiscal, propostas de desvinculação dos recursos da saúde constantemente aparecem no “discurso” das autoridades econômicas e de alguns governantes. Sua efetivação promove três rupturas. Primeiro, interrompe o princípio da segurança jurídica que protege os mais necessitados. Segundo, destrói a implícita solidariedade que existe entre as três esferas de poder na luta pela garantia do princípio universal de defesa da vida.

Promovida a desvinculação, o Ministério da Saúde não estaria mais obrigado a gastar, em relação ao ano anterior, valor igual acrescido da variação nominal do PIB; os Estados, 12% de sua receita disponível, e os municípios, 15%. E terceiro, põe por terra a construção de uma política social ancorada nos direitos sociais. Isso debilita a política de saúde naquilo que tem de essencial – promover a redistribuição social da renda.

A desvinculação nos levaria à “loucura”. Como assegurar a continuidade do estado de lucidez? Só há uma garantia: manter a vinculação na saúde, esclarecendo a todos os gestores públicos – principalmente nesse período de transição das gestões municipais – a responsabilidade social da saúde.

Áquilas Mendes é professor de economia da Faap/SP, vice-presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde e coordenador do Cepam/SP

Rosa Maria Marques é professora do Departamento de Economia e do Programa de Estudos Pós-Graduados em economia política da PUC-SP