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Cruzada pelo aborto

Governo começa a abrir hoje o debate sobre a penalização da interrupção da gravidez e sinaliza que vai rever a legislação que considera criminosa essa prática. Igreja promete derrubar a medida no Congresso Nacional

A Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres instala hoje a comissão tripartite que vai discutir o assunto. Formada por representantes do Executivo, Legislativo e da sociedade civil, a comissão começa a trabalhar sob fogo cruzado. A Igreja, que não tem representantes na comissão, avisa que vai se mobilizar para barrar a proposta no Congresso Nacional.

Tanto no caso de abortos provocados quanto espontâneos, o perfil da maioria das mulheres que dão entrada no Sistema Único de Saúde (SUS) é de negras, jovens e de baixa renda (leia abaixo). Dados do SUS mostram que, entre 1999 e 2002, foram registradas 58,8% de internações por complicações em abortos provocados, contra 41% por aborto espontâneo. Contraditoriamente, a mortalidade foi maior entre as vítimas de aborto espontâneo (56%), enquanto o número de mortes por aborto correspondem a 42,3%.

Os 18 integrantes da comissão querem acabar com o descaso no atendimento à mulher. “Independente do tipo de aborto, a mulher que procura o hospital é vista culturalmente como criminosa”, lamenta a médica Fátima Oliveira, secretária-executiva da Rede Feminista de Saúde. “Isso explica o maior percentual de morte nos casos espontâneos”. A organização é responsável por esse estudo.

Sem forças para reagir à hemorragia sofrida depois do uso de medicamento abortivo, a diarista Gabriela (nome fictício), 37 anos, há cinco anos viveu na pele o risco da ilegalidade e o descaso no atendimento médico. “Só me atenderam porque não podiam me deixar morrer”, recorda-se. Ela vive em Formosa (GO), tem dois filhos, de 11 e 12 anos, mora em uma casa de dois cômodos e paga R$ 70 de aluguel. Conta que não teria condições de criar uma terceira criança. “Se fosse preciso, não sei se faria novamente”, confessa.

Se depender da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Gabriela não vai ver a mudança na legislação. O presidente da Comissão Episcopal para a Vida e Família, dom Rafael Cifuentes, diz que a comissão começa seus trabalhos sem imparcialidade e favorável ao aborto. Cifuentes é representante da CNBB, e adianta que a Igreja fará valer sua posição quando o projeto estiver em tramitação no Congresso. “Há muitos parlamentares contrários ao aborto”, avalia.

Cartas marcadas

Para Cifuentes, a comissão é um jogo de cartas marcadas. “O embrião é um ser humano e precisa ser respeitado. Por que não convidaram a Igreja que representa 70% dos cidadãos brasileiros?”, indaga. Em tom diplomático, o senador João Capiberibe (PSB-AP) ressalta que a função da comissão não é bater martelo e sim, proteger a mulher do perigo.

“Vamos diagnosticar a situação atual para ver as questões relativas à prática clandestina do aborto, clínicas irregulares e pessoas despreparadas que fazem aumentar a morte materna”. Sobre a declaração de Cifuentes, o senador diz que a igreja não pode antecipar um relatório que nem chegou a ser trabalhado e deixa claro qual será a sua posição. “A legislação tem que acompanhar a realidade da mulher”, afirma.

O Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (Conic) foi convidado para participar da comissão. Mas recusou-se a interagir quando viu que seria voz isolada e não teria grande influência. O secretário-executivo do Conic, pastor Ervino Schmidt, lembra que nem entre os religiosos há consenso. Ele lembra que luteranos concordam com o aborto em casos de estupro e risco de vida para a mulher, enquanto a Igreja Católica é contra. “Um tema dessa importância tem que ser discutido com os fiéis”, critica Schmidt.

Representando a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), o especialista em genética médica Thomaz Rafael Gallop diz que vai defender a idéia de que o casal tem o direito de definir o curso da gestação quando constatada anomalia grave, como no caso da gravidez de anencéfalo, quando o embrião não desenvolve o cérebro. “A proposta da comissão é ampliar as permissões legais e não o aborto provocado”, conta.

A comissão terá prazo de 60 dias, com possibilidade de prorrogação pelo mesmo período, para concluir as decisões. O objetivo é revisar a legislação punitiva que trata da interrupção voluntária da gravidez. Para tanto, a comissão vai analisar as legislações nacional e internacional sobre o tema e os anteprojetos de lei em tramitação no Congresso.

CASO PARADO NO SUPREMO

O Supremo Tribunal Federal começou a discutir a autorização para aborto em caso de gravidez de anencéfalo, embrião sem cérebro, ainda no ano passado, mas não tem prazo para retomar os debates. Em julho de 2004, o ministro Marco Aurélio de Mello concedeu liminar autorizando o aborto nesses casos, mas a maioria do STF cassou a liminar. Em outubro, quando a ação voltou a julgamento no tribunal, o ministro Carlos Ayres Britto pediu vistas para analisar a matéria. Desde então, o processo se encontra em seu gabinete. (HB)

Independente do tipo de aborto, a mulher que procura o hospital é vista culturalmente como criminosa

Fátima Oliveira, médica e secretária-executiva da Rede Feminista de Saúde

O número

58,8% das internações no SUS foram por complicações em abortos provocados, entre 1999 e 2002, contra 41% por aborto espontâneo.

Maioria é negra e pobre

Negras e pobres são as maiores vítimas da mortalidade por aborto no Brasil. Os dados são do dossiê Aborto: Mortes Preveníveis e Evitáveis, da Rede Feminista de Saúde, instituição que desenvolve trabalho político e de pesquisa em saúde da mulher. O estudo mostra que as mortes por aborto, em sua maioria, são de mulheres solteiras ou separadas judicialmente. Os resultados servem de ponto de partida para as discussões da comissão tripartite, definida pelo Plano Nacional de Políticas Para as Mulheres para rever a lei restritiva e punitiva atual.

Se os dados não ajudarem a mudar a legislação, as conclusões ao menos expõem à reflexão uma área pouco conhecida. De acordo com a pesquisa, no Brasil ocorre por ano quase um milhão de abortos. Os números se referem, especialmente, aos atendimentos registrados pelo Sistema Único de Saúde (SUS). “A base de dados são do DataSus e do Comitê de Prevenção da Mortalidade Materna das Secretarias Municipais de Saúde de São Paulo, das cidades baianas de Alagoinhas e Feira de Santana, do estado do Paraná e das capitais”, explica a especialista em Saúde Pública Alaerte Leandro Martins, participante da pesquisa da rede.

Das mulheres que foram atendidas pelo SUS, de 1999 a 2002, a razão de mortalidade materna (RMM) por aborto para as negras foi de 11,28 para cem mil bebês nascidos vivos. O número é duas vezes maior que o RMM para as mulheres brancas.De 89 casos de óbitos por aborto analisados em detalhes, identificou-se que 41,6% eram negras, 62,9% eram solteiras ou separadas, 60% trabalhavam como domésticas ou eram dona-de-casa e 55% tinham menos de 29 anos de idade. (HB)

Povo Fala

A legislação que trata o aborto como crime deve ser revista?

Raquel Cauduro de Cunto, 35 anos, professora

‘Sim. Sou a favor da mulher decidir se leva a gravidez adiante em qualquer circunstância. A revisão da lei ajuda a atender os menos favorecidos. A maioria não conta com atendimento público digno e se submete a clandestinidade arriscada, diferente de quem tem recursos.’

Agda Glória da Cruz, 41, funcionária pública

‘Não. Sou contra a liberação do aborto para qualquer situação. Até em caso de anencefalia, bebês que nascem sem cérebro. Não vejo a vida só pelo aspecto material. Mesmo que a criança morra ao nascer, deve ser respeitado o seu pouco tempo de vida durante a gestação.’

Washington Luiz Costa, 46, policial federal

‘Sim. A exigência do boletim de ocorrência para casos de estupros deve ser revista. É constrangedor e doloroso para a vítima ir a uma delegacia fazer o registro do atentado. Muitas vezes os próprios policiais não têm preparo psicológico para atender as mulheres neste caso.’

Marlene Sapucai de Paula, 60, aposentada

‘Talvez possa ser ampliada, desde de que haja cuidado. O aborto não deve ser liberado para o caso em que a pessoa não usou métodos contraceptivos. Faltam também condições adequadas de atendimento ao aborto legal para quem não tem como pagar uma clínica particular.’

Geraldo Célio Gomes, 40, profissional liberal

‘Sim. Mas só para casos de doença. Rever a legislação neste caso, vai facilitar a vida de quem tem direito ao aborto legal e enfrenta a maior burocracia para conseguir atendimento. Já quem fez filho sem planejar tem que deixar nascer e arcar com as conseqüências.’

Vanda de Souza Martins, 44, funcionária pública

‘Não. Sou contra qualquer forma de aborto por princípios religiosos. Sou evangélica e a Bíblia fala que não se deve tirar a vida de ninguém, em hipótese alguma. Deus sempre dá um jeito, mesmo no caso de risco de morte para o bebê ou para a mãe.’