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Farra milionária de liminares na saúde

 

            Orientados por médicos, pacientes brasilienses recorrem à Justiça para conseguir remédios caros e importados de graça. Nos últimos 14 meses, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal concedeu mais de 900 liminares obrigando o governo local a comprar medicamentos de alto custo, que consumiram R$ 7,9 milhões dos cofres públicos. No entanto, parte dos doentes que fazem fila na farmácia da Secretaria de Saúde (SES) criada para atender as ações judiciais são peças de um perigoso e milionário esquema de fraudes e corrupção.

 

            A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Saúde na Câmara Legislativa identificou uma rede de empresas de fachada que importa, com dinheiro público, medicamentos não padronizados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). O relatório da CPI, concluído em março, indica que o esquema começa normalmente numa clínica ou consultório particular, quando o médico prescreve um remédio de alto custo inexistente no Brasil e sem autorização do Ministério da Saúde para ser vendido em território nacional. A receita vem acompanhada de orientação para se procurar advogados ou defensores públicos, que acionam a Justiça e obrigam secretarias de saúde municipais ou estaduais a comprar o medicamento.

 

            A suspeita da CPI é de que esses médicos e advogados representem empresas fornecedoras dos medicamentos. Eles usam a Justiça para burlar a lei e testar medicamentos importados em brasileiros, uma vez que remédio não padronizado pela Anvisa pode ser vendido apenas com sentença judicial. "Forçar a compra desses remédios na Justiça é uma forma de pressionar para que eles sejam legalizados aqui", avalia a relatora da CPI, a médica e deputada distrital Arlete Sampaio (PT).

 

            A deputada lembra que os primeiros indícios de médicos no esquema apareceram com uma troca suspeita de um medicamento importado entre o Centro de Tratamento de Oncologia (Cettro) e a SES, em 2004. Compradas com dinheiro público, via mandado judicial, 72 ampolas de Cetuximab (para tratamento contra o câncer) não chegaram a ser usadas pelo paciente. Ele morreu, mas a clínica que indicou o medicamento não apenas o usou em outros pacientes como ofereceu à SES outros remédios em troca, entregues com meses de atraso e com notas fiscais frias.

 

            A CPI pediu o indiciamento de Murilo Buso, um dos donos da clínica e na época diretor do setor de Oncologia da SES, e também do diretor de Medicamentos William Macedo, que participou da troca. Macedo, como o Correio publicou ontem, participava de happy hours de um dos maiores fornecedores de medicamentos do GDF.

 

Prisão

 

            A principal senha para desvendar esse esquema veio em outubro do ano passado, com a prisão do advogado Carlos Eduardo de Freitas Guimarães, no momento em que ele entregava à SES 36 ampolas de Avastin, usado para tratamento contra câncer e ainda em análise no Ministério da Saúde. O remédio foi comprado por R$ 119 mil, atendendo a decisão judicial que obrigou a SES a pagar pelo tratamento de um doente de câncer. Guimarães usou notas fiscais frias, emitidas pela empresa baiana Asap. O lote não tinha guia de importação nem certificado de origem.

 

            Depois da prisão de Carlos Eduardo, que se apresentou como representante da Fox Croft Trading, importadora sediada em Orlando (EUA), integrantes da CPI e policiais brasilienses fizeram uma busca e apreensão no escritório do advogado no Rio de Janeiro, onde encontraram provas da fraude (leia quadro).

 

            Ao mesmo tempo em que impetrava mandados de segurança para obrigar secretarias municipais e estaduais de Saúde a comprar medicamentos, Carlos Eduardo representava atacadistas fornecedores dos produtos. O advogado está preso no Complexo Penitenciário da Papuda. A Delegacia de Crimes Contra a Ordem Tributária da Polícia Civil e a Superintendência da Polícia Federal em Brasília investigam o esquema em processos separados, que tratam de crimes diferentes. As apurações correm sob segredo de Justiça.

 

O número

 

            Fraude organizada

 

            36 ampolas de remédio contra câncer e ainda em análise no Ministério da Saúde, compradas a R$ 119 mil, por meio de decisão judicial, foram encontradas pela polícia com o advogado Carlos Eduardo de Freitas Guimarães, em outubro. Ele usou notas fiscais frias, emitidas pela empresa baiana Asap. O lote não tinha guia de importação nem certificado de origem.

 

            32 contratos sociais de empresas de fachada – usadas para distribuição ilegal de medicamentos -, foram apreendidos por policiais brasilienses no escritório do advogado, no Rio de Janeiro, junto com passaportes com a mesma foto e diferentes nomes, carteiras de identidade clonadas, registros falsos.

 

 

 

Memória

 

Quadrilha investigada

 

 

 

            A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Saúde foi criada em 29 de março de 2005, com base em um levantamento do Departamento Nacional de Auditoria do SUS (Denasus), e concluída em 20 de fevereiro de 2006. A investigação apontou que o repasse de 98,63% dos recursos do Distrito Federal destinados ao pagamento de internações em Unidades de Tratamentos Intensivos (UTIs) particulares, em 2004, foram para o hospital privado Santa Juliana, em Samambaia.

 

            Após 11 meses de investigação, a CPI pediu o indiciamento de 17 pessoas pelos crimes de formação de quadrilha, improbidade administrativa, sonegação fiscal, enriquecimento ilícito e prejuízo ao erário, entre outros. O ex-secretário de Saúde Arnaldo Bernardino foi acusado pela comissão de liderar um esquema montado na secretaria que teria causado um prejuízo de pelo menos R$ 40 milhões aos cofres públicos.

 

            Uma comissão de promotores do Ministério Público do Distrito Federal aprofundará a investigação da Câmara Legislativa e poderá propor ações civis, penais e administrativas contra os envolvidos. O promotor de Justiça de Defesa da Saúde (Prosus) e integrante da comissão do MP, Jairo Bisol, não fixou prazo para a conclusão dos trabalhos. No momento, ele analisa o relatório final da CPI, um calhamaço de documentos com mais de 15 mil páginas divididas em 44 volumes de inquérito e 65 anexos.

 

 

 

Servidores públicos sob suspeição

 

 

 

            Em média, 30 pessoas são atendidas diariamente na Farmácia das Ações, no Setor de Indústria e Abastecimento (SIA), criada para atender pacientes com liminares. Elas recorreram à Justiça porque não havia remédios gratuitos na rede pública e não tinham dinheiro para comprá-los. O Estado não é obrigado a fornecer todo tipo de medicamento mas, quando há uma liminar, tem que comprá-lo. Na lista dos remédios mais procurados na Farmácia de Ações estão o Embrel, contra artrite, Fortel, contra osteoporose, e o Cetuximab, para tratamento de câncer. Todos importados e em testes na Anvisa.

 

            O salgadeiro Claudeci Pereira Dias, 47 anos, acredita que sua filha, que sofre de epilepsia, sobrevive graças ao remédio que busca todos os meses na Secretaria de Saúde. Há dois anos, uma liminar garante o tratamento da menina e uma economia de R$ 700 mensais à família. O número de pessoas que conseguem medicamentos por meio da Justiça preocupa a SES, o Ministério Público e a Polícia Civil. "Essa intervenção do Judiciário é um desserviço à saúde pública", critica o procurador Jairo Bisol, da Promotoria de Defesa da Saúde. "A solução é garantir uma saúde de qualidade para todos", defende.

 

            Para o delegado Hendel Fonseca, que acompanhou os trabalhos da CPI da Saúde, é preciso fiscalizar os médicos que indicam remédios sem registro na Anvisa e orientam os pacientes a procurar a Justiça para conseguir os remédios. Ele suspeita que esquemas como o do advogado Carlos Eduardo envolvam funcionários. "Há suspeitas de que servidores não exigiam todos os documentos necessários na hora de recepcionar os medicamentos importados pelo advogado", comenta.

 

            O secretário de apoio operacional da SES, José Maria Freire, diz que tem tentado filtrar os pedidos. Ao ser intimada pela Justiça, a SES pede ao médico para reavaliar a necessidade de o paciente usar um medicamento importado. "E, para evitar que pessoas peguem os remédios e os vendam, exigimos que o próprio paciente ou um responsável busque na farmácia da SES com a receita na mão", ressalta Freire.

 

Infração ética

 

            A presidente do Conselho Regional de Medicina (CRM) do DF, Lucianne Reis, diz que nada impede um médico de receitar remédios importados e sem registro na Anvisa. "O ideal é prescrever um medicamento autorizado pelo governo brasileiro, mas o médico tem autonomia. Ele não pode é ter lucro com a indicação", explica. Não há processo no CRM contra profissional da área por esse tipo de delito.

 

            É infração ética o advogado oferecer serviço a um cliente para resolver o problema, como no caso dos doentes que não têm dinheiro para remédio – o profissional tem de ser procurado pela pessoa. "É o que chamamos de captação irregular de clientela. Isso dá de 30 dias a 12 meses de suspensão", afirma a presidente do Tribunal de Ética da Ordem dos Advogados do Brasil no DF, Maria Luísa Estrela. Se ficar comprovado que o advogado recebe dinheiro de laboratórios para defender pacientes contra o GDF, ele pode até ser expulso.

 

            A dona-de casa Geralda Silva, 60, que recorreu à liminar e há oito meses busca os remédios para o filho portador de epilepsia, sugere que a rede pública faça uma triagem para selecionar quem pode e quem não pode comprar remédios. &quotAssim a gente não precisava enfrentar os tribunais.