Ministros do STF decidem amanhã se autorizam a antecipação do parto quando o feto for formado sem cérebro. Nesses casos, além de não haver chance de o bebê sobreviver, gestação implica risco de morte da mãe
O Supremo Tribunal Federal (STF) terá uma missão espinhosa amanhã. Está nas mãos do ministro Marco Aurélio de Mello uma ação movida pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), que reúne mais de um milhão de médicos e enfermeiros em todo o país, pedindo autorização para que os hospitais possam fazer aborto de bebês anencefálicos (sem cérebros).
Se aprovado, o procedimento precisaria apenas do consentimento da mãe. Atualmente, essa prática só é feita com autorização judicial específica para cada caso. É comum os juízes brasileiros autorizarem o aborto nesses situações. No entanto, quando a sentença é proferida, muitas vezes, a mãe já pariu e o bebê está morto, uma vez que não há chances de ele sobreviver sem cérebro.
Até agora, os ministros Celso de Mello, Carlos Aires Brito e Joaquim Barbosa já se manifestaram a favor do aborto nesses casos. No entanto, ainda serão necessários pelo menos mais três votos para a concessão da medida – a corte do STF tem 11 ministros.
Num trabalho pioneiro no país, o Ministério Público do Distrito Federal dá toda a assistência psicológica e jurídica para que a gravidez seja interrompida assim que esse tipo de má-formação é comprovada. O modelo será adotado pelo México. A informação é do promotor Diaulas Costa Ribeiro, responsável pela Promotoria de Defesa dos Usuários do Serviço de Saúde (Pró-Vida), que voltou daquele país no início desta semana. ”Meu trabalho vai acabar porque a legislação está evoluindo nesse sentido”, orgulha-se. ”Fui responsável por um rito de passagem.”
Igreja
Na oposição, está a Igreja Católica. Apesar de a instituição religiosa reconhecer que a sobrevivência desses bebês é impossível, os representantes da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) são contra a antecipação do parto em qualquer circunstância. ”Nós temos receio de que o STF abra as portas para a legalização do aborto em outras situações”, ressalta o secretário-geral da CNBB, dom Odilo Pedro Scherer.
Além disso, a ação que corre no STF é embalada por uma grande polêmica alimentada pela própria Igreja sobre o conceito de vida. A CNTS, por exemplo, argumenta que não existe vida nos fetos sem cérebros. A Igreja Católica defende que, enquanto o bebê estiver respirando ou enquanto um órgão estiver funcionando, seja no ventre ou fora dele, existe vida, alma e espírito.
No centro da discussão existem centenas de mães angustiadas por esperar um bebê sem cérebro. Em dez anos, no país, duas mil mulheres deram à luz bebês anencefálicos. No Distrito Federal, foram registrados 120 casos de 2000 para cá. O bebê que conseguiu sobreviver por mais tempo durou apenas três dias. Há juízes, principalmente em comarcas do interior, que negam a autorização para aborto de bebês sem cérebros, alegando motivos legais e religiosos.
Anomalia
A doméstica Maura Ferreira da Silva, 26 anos, católica, moradora de Planaltina do DF, está grávida há seis meses. Na semana passada, ela descobriu que seu bebê está com 630 gramas e é anencefálico. A descoberta começou com uma cólica que não dava trégua, até que uma ecografia revelou a anomalia do feto. O médico Valdecir Gonçalves Bueno, do Hospital Regional da Asa Sul (Hras), explicou para Maura que o bebê não sobreviverá após o parto e que cabia a ela decidir se levava a gravidez adiante ou se a interromperia. Ela decidiu tirar o feto.
Para fazer o aborto, Maura foi ao Ministério Público do DF pedir um alvará, que saiu em 24 horas. Esse tempo, considerado recorde, só é comum em Brasília, desde que o Tribunal de Justiça delegou essa decisão ao Ministério Público. ”Fiquei triste, mas achei que não vale a pena levar a gravidez até o fim. Seria como prolongar o meu sofrimento”, justificou Maura. Na sexta-feira da semana passada, ela havia tomado medicamento para induzir o parto. Até a segunda-feira, ainda não havia abortado.
A funcionária pública Francisca Elizabeth Correa, 24 anos, evangélica, moradora de Valparaíso do Goiás, também está grávida e espera um bebê anencefálico. O diagnóstico saiu há dois meses. O médico dela ressaltou que era possível fazer a antecipação do parto. Atualmente, ela está no sexto mês de gravidez. ”Nunca passou pela minha cabeça abortar. Acho isso um crime contra a vida. Se Deus pôs um bebê doente dentro de mim, só ele tem o direito e o poder de tirá-lo”, diz Francisca.
Na verdade, já existe um consenso entre médicos e profissionais de enfermagem de que a extração do feto é o caminho mais saudável para as mulheres que estão grávidas de bebês anencefálicos. Até porque esse tipo de gravidez implica risco de morte para as mães. ”A ação que está no STF tem por objetivo garantir o direito dessas mulheres, mas também de proteger os profissionais de saúde que nunca se sentem seguros em realizar o procedimento por receio de serem prejudicados judicialmente”, diz José Caetano, presidente da CNTS.
Mistério para a ciência
A anencefalia é uma má-formação do bebê ainda misteriosa para a ciência e que pode ter origem na genética ou na má alimentação da mãe. Nos países de primeiro mundo, o governo acrescenta ácido fólico na água para prevenir essa doença. No Brasil, observa o médico Valdecir Gonçalves, obstetra e coordenador do Serviço Médico Fetal do Hras, ainda não existe esse cuidado.
O bebê que nasce com a deformação não tem cérebro nem caixa craniana, mas os demais órgãos geralmente funcionam normalmente. No entanto, tão logo é cortado o cordão umbilical, ele morre. No Brasil, o tempo máximo de sobrevivência de uma criança anencefálica foi de 72 horas.
Segundo a antropóloga Débora Diniz, do Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, entidade parceira da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS) na ação movida no STF, garantir o direito de a mãe escolher se leva adiante a gravidez de um bebê anencefálico é uma questão de justiça. ”As mães ricas descobrem nos primeiros meses de gestação e antecipam o parto em clínicas particulares, sob sigilo e sem autorização judicial. Já as mães pobres recorrem ao serviço público, precisam da formalidade da lei e nem sempre têm a cumplicidade do médico”, diz Débora.
A antropóloga, que desenvolve um trabalho dirigido a essas mães pobres, diz que elas têm medo da Justiça. ”Essas mães fazem a antecipação do parto muito tarde e acabam sofrendo duas vezes. Uma porque o bebê já está condenado à morte, e a outra ocorre porque ela vai ter de dar uma satisfação para a família, os amigos e a vizinhança. Isso porque, com a barriga grande, ela já estará grávida socialmente”, ressalta.
Para tentar amenizar o impacto da ação, a CNTS não cita o termo ”bebê” nem ”aborto” na ação. Usa os nomes ”feto” e “antecipação” do parto. ”Para nós, isso é só uma questão de nomenclatura. A Igreja assegura que se trata de aborto”, afirma o vice-presidente da CNBB, dom Antônio Celso de Queirós. ”Daqui a pouco, vão defender sentença de morte para os loucos, doentes de Aids, leprosos e outros pacientes terminais”, diz o bispo. (UC)
As mães ricas antecipam o parto em clínicas particulares, sob sigilo e sem autorização judicial
Débora Diniz, antropóloga
Os argumentos de cada um
O grande debate em torno da legalização do aborto de bebês anencefálicos está no conceito de vida e morte. Nenhuma lei brasileira trata desses conceitos. No entanto, a lei de transplantes diz que, depois que o cérebro pára de funcionar, não há mais vida. Veja o choque de argumentos em volta da ação que o STF vota amanhã:
Quem é contra
O bebê sem cérebro tem o direito de nascer, mesmo que não sobreviva após o parto
A Igreja Católica sustenta que a vida não se limita ao funcionamento do cérebro. Enquanto o coração, o pulmão e demais órgãos estiverem funcionando, o bebê tem vida
Mesmo sem cérebro, o bebê merece viver até o limite natural da vida. Mesmo que esse limite sejam poucos minutos
Pode-se abrir um precedente perigoso para a legalização do aborto
Quem é a favor
Levar a gravidez até o fim é pôr a vida da mãe em perigo, além de prolongar o sofrimento dos pais
Sem cérebro, o bebê estará condenado à morte tão logo saia do ventre
Uma questão como essa não pode ficar apenas na esfera das discussões religiosas.
Nenhuma mãe que tenha no ventre um bebê anencefálico será obrigada a fazer a extração do feto