Uma decisão da Justiça Federal, de anteontem, ordena que a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) determine a todos os hemocentros do país que não sejam aplicadas questões para identificar a orientação sexual de possíveis doadores de sangue na entrevista que antecede a coleta.
A ordem judicial ocorreu depois que o Ministério Público Federal do Piauí entrou com uma ação na qual classifica de "discriminatória" a norma da agência que regulamenta as condições para que uma pessoa possa doar sangue.
Pela resolução 153/2004 da Anvisa, são inabilitados por um ano para a doação "homens que tiveram relações sexuais com outros homens e ou as parceiras sexuais destes" em um prazo de 12 meses antes da coleta.
A medida é uma das precauções para evitar contaminações no período chamado de janela imunológica, em que o doador pode estar contaminado por um vírus, como o HIV, e os testes de sangue não detectarem.
Na decisão liminar (provisória) -à qual cabe recurso-, o juiz Márcio Braga Magalhães, da 2ª Vara Federal do Piauí, declara que reconhece "o caráter discriminatório contido na resolução" e que "considera os homossexuais e bissexuais legitimados a doar sangue".
Segundo o magistrado, fica determinado que "todos os hemocentros do país, na entrevista feita antes do processo de doação de sangue, se abstenham de fazer perguntas que visem identificar a orientação sexual do doador".
O juiz definiu 30 dias para a ordem ser cumprida e estabeleceu multa de R$ 1.000 por dia em caso de descumprimento.
A assessoria de imprensa da Anvisa disse que só comentaria o caso depois de ser comunicada oficialmente do teor da decisão. O órgão afirmou que possivelmente recorrerá da liminar.
Vitória
A presidente do grupo GLBT (Gays, Lésbicas, Bissexuais e Transgêneros) Matizes, Marinalva Santana, afirmou que a decisão provisória da Justiça é uma grande vitória.
O grupo foi o autor de um requerimento ao Ministério Público Federal que originou a ação da Procuradoria e a decisão judicial sobre o caso.
"É mais uma vitória na nossa luta para encerrar com qualquer tipo de discriminação da sociedade", disse.
De acordo com ela, o documento protocolado no Ministério Público Federal ocorreu em decorrência de vários homossexuais de Teresina terem relatado constrangimento ao tentarem doar sangue no hemocentro da cidade.
"Eles se diziam constrangidos quando iam tentar doar sangue em razão das perguntas feitas pelos funcionários do banco de sangue", afirmou.
Questionário gera polêmica entre médicos
Dois especialistas em infectologia ouvidos pela Folha têm opiniões diferentes sobre a decisão.
Para Vicente Amato Neto, professor emérito da Faculdade de Medicina da USP, a medida é correta. "A triagem sorológica do HIV é rotina na doação de sangue. Todos os doadores são submetidos ao exame. [O questionário] tem inconvenientes como discriminação, mal-estar."
Segundo Amato Neto, o doador pode mentir na entrevista. "É muito fácil o indivíduo negar. O que se pretende [com as perguntas] é economizar a realização de provas."
Já para Caio Rosenthal, médico do Instituto de Infectologia Emílio Ribas, a decisão "é um pouco arriscada" pois "o homossexual está mais exposto a risco".
"Hoje, com mais maturidade, acho essa decisão um pouco arriscada, infelizmente. Estou mudando minha opinião. Eu já falei que achava que era um progresso, uma abertura, mas me retraio um pouco", disse Rosenthal.
Ele defende a realização do questionário. "Ainda temos de ser bastante cautelosos e fazer as perguntas. Não só as de opção sexual, mas também se a pessoa já recebeu transfusão, se já usou drogas."