O Conselho Federal de Medicina (CFM) aprovou ontem resolução que permite ao médico suspender tratamentos e procedimentos que prolonguem a vida de doentes terminais e sem chances de cura- desde que a família ou o paciente concorde com a decisão, que deve constar no prontuário médico.
A norma, aprovada por unanimidade em plenária do CFM, vale para médicos de todo o país. Mas ela só tem efeito interno, isto é, não isenta o profissional de ser responsabilizado criminalmente.
A polêmica é grande. Em 2005, o Ministério Público e a OAB condenaram medida semelhante proposta pelo conselho médico de São Paulo por entender que era eutanásia, prática ilegal pela qual se busca abreviar a vida de um doente incurável. Nesse caso, o médico pode ser processado por homicídio privilegiado.
Para os médicos, a resolução trata da ortotanásia, o ato de cessar o uso de recursos que prolonguem artificialmente a vida quando não há mais chances de recuperação. Exemplo: um doente terminal de câncer sofre uma parada cardíaca. Hoje, o médico tenta reanimá-lo e o coloca em respirador artificial na UTI. Se o rim entrar em falência, por exemplo, será submetido à diálise peritonial.
A idéia é que, a partir de agora, esse paciente não seja "ressuscitado". Ele receberá analgésicos, sedativos e todos os cuidados para que não sinta dor, mas não terá sua vida prolongada por meio dos recursos tecnológicos de uma UTI.
Para Clóvis Francisco Constantino, vice-presidente do CFM, não há perigo de as pessoas confundirem a medida com eutanásia. "Nós somos absolutamente contra a eutanásia, não só porque é eticamente condenável, mas também porque, no nosso país, não é permitida. Eutanásia significa deliberadamente provocar a morte. Obviamente que nem o paciente, nem a família e nem nós, médicos, queremos isso."
Para Constantino, a resolução é "doutrinária". "Ela doutrina o médico no sentido de fazê-lo entender que existe um momento em que não é possível fazer mais nada em benefício do paciente. Que qualquer coisa que prolongue a vida só vai causar sofrimento", diz.
O médico Roberto D’Ávila, corregedor do CFM, reforça: "O paciente não será jamais abandonado".
Segundo José Eduardo de Siqueira, presidente da Sociedade Brasileira de Bioética, a resolução encerra um dilema ético. "Os médicos, sobretudo os intensivistas, estão reféns hoje de uma situação cruel: não ter amparo e não saber quando interromper um tratamento de um doente grave e incurável."
Siqueira explica que a tecnologia avançou de "maneira extraordinária", mas desguarnecida de reflexão ética.
"Na grande maioria das UTIs, vemos doentes morrendo com agonia, com sofrimento. Essa resolução vai permitir que o médico reconheça: "Pronto, não há mais técnica que vá resolver esse problema". É uma decisão moral e agora eles estão permitidos a isso", diz Siqueira.
A médica Maria Goretti Maciel, presidente da Academia Nacional de Cuidados Paliativos, concorda: "Foi uma vitória imensa para a medicina brasileira. O médico tem medo. Acha que todo final de vida tem que ser numa UTI. Ele agora sabe que pode dar um tratamento que vise o conforto do paciente, um final de vida digno". Na avaliação dela, a sociedade deve apoiar a resolução. "Ninguém quer ver seu familiar sofrendo, passando dor. Ninguém quer vê-lo morrer sozinho na UTI. A morte tem que ser encarada como algo natural da vida."
A partir do próximo ano, o Ministério da Saúde deve implantar um programa nacional de cuidados paliativos e controle de dor. A idéia é que o conceito seja adotado em todo o sistema, das equipes de médico da família até os hospitais de grande complexidade. Já o CFM vai regulamentar os serviços de cuidados paliativos, determinando, por exemplo, quais drogas devem ser usadas para analgesia, sedação e para conforto do paciente terminal.
Médicos apóiam resolução do CFM; OAB fica dividida
A CNBB informou que só se manifestará após tomar conhecimento do texto. Norma que prevê suspensão de novos tratamentos para pacientes terminais sem chances de cura é aprovada por católica e por espírita.
A resolução aprovada ontem pelo Conselho Federal de Medicina que permite ao médico suspender tratamentos que prolonguem a vida de doentes sem chances de cura divide opiniões dentro da OAB.
Enquanto o presidente da Comissão de Bioética e Biodireito da seccional São Paulo, Erickson Gavazza Marques, opina que a resolução contraria a legislação, o vice-presidente nacional da ordem, Aristóteles Atheniense, diz acreditar que não haverá muita resistência da entidade em concordar com a posição do conselho.
"Há uma tendência mais liberal e mais democrática de examinar temas como esse sem pieguismos e sem preconceitos, especialmente religiosos", afirmou Atheniense.
A médica católica Eliane Elisa de Souza e Azevedo, ex-reitora da Universidade Federal da Bahia e especialista em bioética, cita uma encíclica do papa Pio 12 condenando o prolongamento artificial da vida para apoiar a resolução. A médica lembra que o papa João Paulo 2º, morto no ano passado, recusou o tratamento em hospitais, ainda que contasse com mais recursos técnicos.
O médico David Monducce, palestrante da Feesp (Federação Espírita do Estado de São Paulo), disse que a decisão de permitir a ortotanásia é positiva. De acordo com ele, a doutrina espírita entende que prolongar artificialmente a vida não traz nenhum benefício.
O presidente da Sociedade Brasileira de Terapia Intensiva, Douglas Ferrari, elogiou a decisão do CFM, mas defendeu um aprimoramento do texto da resolução. Segundo ele, o uso da palavra "suspender" pode dar a entender que os médicos poderão interromper tratamentos a que o paciente é submetido -exemplo, retirar um antibiótico. Na verdade, afirma, o conselho apenas respaldou o que os médicos já fazem em todas as UTIs do Brasil: não insistir em novas terapêuticas, como uma nova cirurgia, um novo remédio que só trariam mais desconforto ao doente e não mudariam sua condição de saúde. A CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) informou que só se manifestará após tomar conhecimento do texto da resolução.
"Norma acaba com a tortura", afirma médico
O médico Roberto D’Àvila, corregedor do CFM, afirma que a resolução acabará com a "tortura" a que pacientes terminais são submetidos nas UTIs. Ele diz que, durante a elaboração da medida, recebeu apoio de representantes do Ministério Público e do Judiciário. (CC)
FOLHA – Como os médicos devem agir a partir de agora?
ROBERTO D’ÀVILA – O médico deve reconhecer que não é invencível. Que a morte se aproxima do doente e deixar de fazer coisas que só causem sofrimento. Deve reconhecer a dignidade daquela vida, não permitindo que sinta dor, que fique ao lado da família.
FOLHA – Como será na prática?
D’ÀVILA – Hoje, um paciente em terapia intensiva recebe até 178 procedimentos em 24 horas de UTI, desde uma punção venosa até aspiração, entubação, drenos. Que benefício é esse quando se trata de doente terminal e incurável? Há quem diga que isso é até uma forma de tortura. Então, com essa resolução, estamos dizendo: acabou a época da tortura.
FOLHA – Mas não há o risco de alegar que é uma eutanásia?
D’ÀVILA – É possível, mas é um grande equívoco. Na eutanásia, há uma contribuição ativa de alguém. Eu injeto uma droga em alguém e a pessoa pára de respirar. Tenho uma atuação direta no fenômeno morte imediata. Nossa resolução é exatamente oposta. O que ela quer é acabar com a distanásia, que é a morte dolorosa, prolongada, e adotar a ortotanásia, que é a morte tranqüila, com o paciente sendo bem-acolhido no seu último momento.
“Resolução é um crime”, diz promotor
Para o presidente da Comissão de Bioética e Biodireito da OAB-SP, Erickson Gavazza Marques, os médicos que seguirem a nova resolução do CFM poderão responder a processo criminal.
FOLHA – O que o senhor achou da resolução?
ERICKSON GAVAZZA MARQUES – Eu não concordo porque na realidade a legislação proíbe qualquer forma de auxílio ao suicídio ou à prática de um homicídio, o que seria o caso. Acho que a resolução contraria a legislação vigente, principalmente o Código Penal, que prevê como crime o fato de você não dar assistência a uma pessoa que está em perigo de vida, sobretudo se você tem o dever de fazer. FOLHA – Então os médicos poderão ser processados por homicídio?
MARQUES – Claro, sem dúvida nenhuma. O médico e a família que autorizar.
FOLHA – Então a resolução não tem amparo legal?
MARQUES – Não tem amparo e nem força legal nenhuma. Os médicos não podem ser orientados a praticar um crime. Porque a eutanásia, em qualquer modalidade, hoje é crime.
FOLHA – A resolução trata da ortotanásia. Isso não muda esse entendimento?
MARQUES – É claro que vai haver discussão pelo que representa para saúde pública e do ponto de vista legal também. Isso porque o Código Penal é um obstáculo a qualquer modalidade de eutanásia ou ortotanásia. Isso é crime. Eles apenas estão vestindo a noiva de forma diferente, mas, na realidade, a noiva é a mesma. Ou seja, é uma forma de eutanásia.
A ortotanásia e o que diz o direito penal
Difere da clássica idéia de eutanásia, tão combatida por leis e religiões, a supressão ou limitação dos procedimentos que prolonguem a vida de um paciente -a chamada ortotanásia, que recente resolução do Conselho Federal de Medicina tenta regulamentar.
Um olhar complacente verá na resolução uma prova de humildade da ciência diante das leis inexoráveis da vida. Uma visão mais cautelosa enxergará os perigos de dar excessiva elasticidade ao princípio da autonomia. É mesmo sedutor o efeito tranqüilizante da transferência de responsabilidade ao paciente. O consentimento desanuvia consciências, mas terá algum valor? Há quem diga que não: até nos desenganados o desejo de morrer é sempre fugaz. Diz Elizabeth Kübler-Ross: "Jamais tive um paciente que quisesse morrer de forma tão firme que sua convicção resistisse a uma longa conversa ou a remédios apropriados". Sobre os perigos do consentimento firmado por parentes, Clint Eastwood e seu "Menina de Ouro" falam por nós.
Como o direito penal deve tratar da matéria? É uma questão difícil de ser disciplinada por normas abstratas. Mas não se esqueça que a lei deve proteger a vida humana como bem irrenunciável e intangível. Não procede, pois, a grita dos que dizem que esse problema deve ficar à margem do direito penal.
Não é recomendável que o Estado renuncie ao direito de exercer o controle sobre ações que podem lesar bem jurídico de tal magnitude.
Não se trata de uma defesa intransigente da proliferação de medidas penalizadoras -e sim de garantir ao direito penal a faculdade de buscar o justo equilíbrio entre as inclinações pessoais e o interesse público na preservação do mais importante dos direitos humanos.
Ricardo Barbosa Alves é promotor e mestre em filosofia do direito pela PUC-SP
Dignidade para o paciente terminal
Com o objetivo de responder a anseios da comunidade médica, de familiares e principalmente dos pacientes em estado terminal irreversível, finalmente agora podemos comemorar a aprovação de um texto cujas características, além de humanitárias, trazem consigo um dos pilares básicos da dignidade do ser humano: sua autonomia.
O prolongamento da vida a qualquer custo, de forma obstinada e artificial, em situações onde foram aplicados todos os conhecimentos médicos e tecnológicos, torna-se incompatível com a qualidade de vida da pessoa e traduz muito mais princípios de ordem moral e religiosa que éticos. Assim, diante de pacientes consensualmente considerados irrecuperáveis, preconizamos cuidados paliativos e humanizados para o controle da dor e dos desconfortos e não mais investimentos desnecessários.
Com os novos recursos tecnológicos, de diagnóstico e avanços terapêuticos, é possível oferecer enorme sobrevida ao paciente terminal, prolongando artificialmente essa fase por tempo indefinido, dificultando até o ponto de sabermos se está vivo ou morto. Seria esse o objetivo da medicina, manter a vida a qualquer custo?
É nesse sentido que, com a resolução do CFM, a medicina dá um passo à frente, levando em conta a vontade do doente ou dos familiares de suspender manobras infrutíferas. Além disso, dá ao médico maior liberdade para tomar condutas, garantidas por novas salvaguardas éticas. Até então, tomado muito mais por temor de punição que por fé, a obstinação de manter o paciente vivo a qualquer preço era o paradigma a ser seguido sempre.
"Deixem-me partir" foram as últimas palavras pronunciadas pelo papa João Paulo 2º e sua vontade foi beneficentemente respeitada.
Caio Rosenthal , médico infectologista, integra o Conselho Regional de Medicina de SP.