O novo sistema da fila de transplante de fígado, implantado pelo Ministério da Saúde em 17 de julho, já apresenta problemas. Pelo menos é o que tem ocorrido na maior e mais organizada central de transplantes do País, a do Estado de São Paulo – o Estado tem cerca de 4 mil pessoas na fila e é responsável por 45% das cirurgias do Brasil.
"Até agora, só 32% dos pacientes atualizaram o Meld (exame que determina a gravidade da doença e, conseqüentemente, de acordo com o novo critério, o lugar do paciente na fila)", avalia Luiz Augusto Pereira, coordenador da Central do Estado. "Significa que 68% nem sabem em que ponto estão na espera." A média nacional de pessoas que atualizaram o exame é um pouco maior: 43%.
O exame de sangue, que avalia os níveis de creatinina, bilirrubina e INR (coagulação do sangue) é simples e coberto pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Ele prevê as chances de morte do paciente. Pelo novo sistema, em vez de um lugar na fila conquistado pela ordem cronológica, o que determina o posto é o número do Meld – quanto maior ele for, mais grave é o caso. Os números são enviados para centrais regionais de transplante pelo médico do paciente.
Mas não basta fazer uma vez o exame. Quando o Meld é de 11 a 18, por exemplo, o teste tem de ser atualizado de três em três meses. De 19 a 24, a cada mês. Acima de 25, semanalmente. "É uma oscilação tremenda. Basta um dia para a pessoa mudar o lugar na fila", conclui Pereira.
Amanhã, uma comissão de médicos do Estado vai se reunir com o coordenador da Central de Transplantes do Estado para a criação de um documento com dúvidas e sugestões sobre o novo sistema. O texto será encaminhado para o Ministério da Saúde.
Em nota, o ministério afirmou que "São Paulo tem número mais baixo de atualização de exames por causa da enorme fila. A do Rio, por exemplo, tem 1.165 pessoas. A de Minas tem 42 pessoas. O problema é fácil de resolver, o exame é simples. A responsabilidade é das equipes médicas transplantadoras que têm de orientar seus pacientes."
AÇÃO NA JUSTIÇA
O ex-empresário Paulo Sérgio Ferreira dos Santos, de 47 anos, mantém seus exames em dia e, mesmo assim, não está satisfeito. Há cinco dias, moveu a primeira ação contra o novo critério. "Estou nesse calvário há quase três anos, quando entrei na fila. Antes do novo sistema, eu era o número 96. Pela ordem cronológica, seria operado nos próximos três meses. Agora, não tenho mais previsão", conta ele.
A ação, que tramita na 8ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo, foi movida contra a coordenação da Central de Transplantes do Estado. "Eles serão notificados até o fim da semana", explica o advogado Luiz Coppi. No documento, Ferreira pede para que seu lugar na fila seja mantido. "Não quero passar na frente de ninguém. Só quero ter a mesma expectativa de antes", diz ele.
O autor da ação tem Meld de 20. Ele sofre de cirrose decorrente de hepatite C. Perdeu o emprego, tem restrição alimentar rigorosa e hoje toma 11 comprimidos por dia, entre diuréticos, vitaminas, analgésicos e laxantes, para se manter em condições mínimas de saúde. "Dificilmente alguém com Meld menor de 25 é hoje transplantado", diz o cirurgião Sergio Mies, chefe da Unidade de Fígado em São Paulo.
Depois do novo sistema, foram feitos 37 transplantes de fígado no País, 23 deles em São Paulo. O Meld médio no País foi 30.
A Associação Brasileira dos Transplantados de Fígado e Portadores de Doenças Hepáticas (Transpática), que desconhecia a informação de que apenas 32% dos pacientes na fila de espera atualizaram o Meld no Estado, defende o novo sistema. "É um método democrático, já que permite que os mais graves sejam operados antes", avalia Sidnei Moura Nehme, conselheiro da entidade.
O produtor de eventos Moisés Fruschein, por exemplo, que espera por um órgão há um ano e meio, tinha Meld 14 quando o novo sistema começou. Ele tem hepatite B crônica e está em ótimas condições de saúde. "Hoje meu Meld é 6. Estou muito bem e sei que dei lugar para quem está pior", avalia.
De acordo com o cirurgião Mies o problema não é o novo critério. "Se o número de doadores fosse significativo, tudo bem, pessoas com Meld inferiores, mas em estado grave, seriam operadas num tempo mais hábil", explica. Hoje, há cerca de 7 mil pessoas na fila de transplante de fígado no País. Em 2005, 838 cirurgias foram realizadas.
Nos Estados Unidos, onde o sistema por gravidade foi implantado em 2002, o número médio do Meld dos pacientes que já foram operados é 20,7. Estudo americano feito com 213 pacientes e publicado em 2005 no American Journal of Transplantation mostrou que os gastos laboratoriais, por exemplo, aumentaram 90% depois da entrada do novo sistema. O tempo de internação ficou 135% mais longo. "Os dados são coerentes, já que pelo novo sistema se priorizam os casos mais graves e, portanto, são casos mais delicados, que pedem mais cuidado", conta Mies.
Entenda o caso
Como era antes: O lugar na fila era determinado pela ordem de chegada do paciente, independentemente da doença. Mas casos de hepatite fulminante e retransplante, por exemplo, iam para a frente da fila
Como é hoje: Desde 17 de julho, o lugar de espera passou a ser definido pela gravidade. As exceções continuam a valer
Meld: Model for End-Stage Liver Disease é o exame de sangue que determina a gravidade do paciente. O teste tem escala de 6 a 40. Quanto maior o número, mais grave é o caso. Coberto pelo Sistema Único de Saúde, avalia os níveis de creatinina, bilirrubina e INR (coagulação de sangue)
Fígado: É um dos órgãos que menos sofrem rejeição em transplantes. Mesmo assim, é uma das cirurgias mais complexas. O órgão tem inúmeras funções. Entre elas, produzir proteínas, armazenar glicose e fabricar a bile, que ajuda na dissolução da gordura
Números
32% dos pacientes que estão na fila do Estado atualizaram o Meld depois da implantação do novo sistema
43% é a média de atualização do País
7mil é a média de pessoas que esperam pelo transplante de fígado no Brasil
4 mil é a média da fila no Estado de SP