O Congresso Nacional editou, em 1º de outubro de 2003, a Lei nº 10.741 – mais conhecida como Estatuto do Idoso -, que estabelece e regula os direitos das pessoas com mais de 60 anos de idade, os quais, por sua condição especial de saúde, capacidade de trabalho e outras, mereceram tratamento legal diferenciado por parte da sociedade e do Estado. A lei, que integra o moderno conceito de legislação social, contém princípios gerais de proteção aos idosos, dirigidos de modo uniforme a toda a sociedade, e capítulos especiais referentes a direitos específicos, dentre os quais o acesso aos serviços de saúde.
As disposições preliminares (Título I) do estatuto contêm um grande número de normas-princípio, que se infiltram por todo o sistema legal brasileiro. Estas normas, por sua própria natureza, estabelecem conceitos amplos que orientam a interpretação e aplicação das demais disposições do próprio estatuto, de outras leis, dos contratos e das relações sociais em geral. São consideradas, modernamente, um importante instrumento para a aplicação da Justiça, por concederem aos magistrados um vasto espectro para decidir, com base em princípios de boa-fé, eqüidade e razoabilidade, dentre outros. Por causa delas, a lei tende a tornar-se mais flexível e adaptável à evolução social.
Por outro lado, tais normas representam um grave risco à segurança jurídica, de vez que a subjetividade que lhes é inerente impede ou, no mínimo, dificulta enormemente a previsibilidade da sua aplicação pelo Poder Judiciário, no caso concreto.
As questões relativas à proteção da saúde são, talvez, as que apresentam maior conteúdo de insegurança, em virtude dos absurdos que consagra. Um exemplo é o artigo 2º da lei, especialmente relevante por assegurar aos idosos “todas as facilidades para preservação de sua saúde física e mental”. Trata-se de um daqueles dispositivos legais que deixa ao magistrado um amplo poder de discricionariedade. Afinal, qual a melhor interpretação para a expressão “todas as facilidades”? Seriam estas facilidades de natureza financeira, administrativa ou somente assistencial? Dependendo da resposta, o dispositivo pode gerar situações absurdas e consagrar direitos inexeqüíveis.
O artigo 17 do estatuto, por sua vez, estabelece que o idoso tem o direito de decidir sobre a condução do seu tratamento. Ora, a idade avançada não implica incapacidade e, nesse contexto, o dispositivo apenas ratifica os princípios gerais relativos à capacidade estabelecidos no novo Código Civil. Sendo maior e capaz, é evidente que qualquer paciente tem autonomia para deliberar sobre o tratamento e, inclusive, negar-se a receber cuidados médicos.
A subjetividade inerente às normas dificulta a previsibilidade da sua aplicação no caso concreto pelo Judiciário
No parágrafo único do artigo, o Estatuto do Idoso estabelece o rol de pessoas que podem decidir sobre o tratamento do idoso em caso de impossibilidade permanente ou momentânea deste, atribuindo ao curador e aos familiares papel relevante. Parece que, nestes casos, a liberdade daquelas pessoas é relativa e limitada à opção entre condutas alternativas e cientificamente justificáveis. Os responsáveis podem, portanto, escolher entre a realização de uma cirurgia cardíaca ou de uma angioplastia, mas nunca exigir qualquer conduta notadamente contrária à preservação ou recuperação da saúde do paciente, como, por exemplo, impedir uma transfusão sangüínea. Essa limitação decorre de que uma pessoa, mesmo curador ou parente direto, não pode dispor da vida ou da saúde de outra. Entendimento diverso contrariaria os princípios gerais da Constituição Federal e do próprio estatuto.
O inciso IV do artigo 17 é outro gritante absurdo, seguramente elaborado por quem não tem nenhum conhecimento acerca da dinâmica hospitalar. De acordo com aquele dispositivo, médicos e hospitais ficam obrigados a notificar o Ministério Público sempre que estiver sob seus cuidados paciente idoso desprovido de suas faculdades mentais e sem assistência familiar. A conseqüência não será outra senão gerar insegurança e dúvida na comunidade médica. Ademais, a notificação compulsória do Ministério Público sobre a conduta médica adotada constitui violação do sigilo profissional e ingerência indevida do Estado na relação médico-paciente.
Outro dispositivo absurdo é o que impõe às instituições de saúde o ônus de “promover o treinamento e a capacitação dos profissionais” para prestação de assistência aos pacientes idosos. De fato, seria perfeitamente razoável estabelecer que as instituições de saúde devem manter em seus quadros profissionais treinados e capacitados para atendimento de pacientes idosos. Obrigá-las, porém, a treinar e capacitar sua equipe é coisa diversa. Afinal, hospitais não são centros de treinamento. Mais absurdo, ainda, é atribuir aos prestadores de serviços de saúde a responsabilidade pela orientação de cuidadores familiares e grupos de auto-ajuda.
Assim, a exemplo de outros diplomas legais voltados para a proteção social, o Estatuto do Idoso mostra-se, na prática, inadequado ao mundo real.