Uma auditoria do Ministério da Saúde no orçamento de 2004 do Paraná aponta que o estado deixou de investir R$ 508 milhões no setor de Saúde naquele ano. O valor se refere à diferença entre o que foi e o que deveria ter sido aplicado no setor, conforme estabelece a Emenda Constitucional 29. A fiscalização foi pedida pelo Ministério Público Estadual, que, com base na conclusão do documento, entrou com três ações contra o estado, na 3.ª Vara da Fazenda, em Curitiba.
O governo do estado contesta o resultado da auditoria e diz que não há irregularidades. O problema, de acordo com o ministério, começou a ocorrer em 2000, quando Jaime Lerner era o governador. Desde então, o “desvio” já soma R$ 1,3 bilhão. As ações judiciais correm desde 2002 e estão na fila de espera para serem julgadas. Para o Ministério Público, a aplicação indevida atrasa a resolução de problemas crônicos do setor, como demoradas filas de atendimento e falta de investimentos nos hospitais.
A lei estabelece que 12% da arrecadação própria do estado têm de ser destinada à Saúde. De acordo com a auditoria, o Paraná investiu 5,4% em 2004, menos da metade do necessário. Dos R$ 930,4 milhões, foram aplicados R$ 577,6 milhões de recursos próprios – parte deste valor, R$ 155,6 milhões, ainda teria sido aplicada de forma indevida, segundo a auditoria. Com isso, o ministério considera que foram efetivamente investidos R$ 422 milhões de recursos próprios.
Os pontos considerados confusos pelos auditores terão de ser esclarecidos na Justiça. Antes de concluir a auditoria, o Ministério da Saúde notificou a Secretaria de Saúde (Sesa), em outubro, e o governador Roberto Requião, em novembro passado. O objetivo era que eles justificassem o descumprimento da lei. Somente a Sesa respondeu e o conteúdo das explicações foi considerado insatisfatório pelos auditores.
Governo do estado e Ministério da Saúde têm interpretações distintas da legislação. O que para um é irregularidade, para outro não é. O ponto principal refere-se ao que é uma ação de Saúde. Para o governo, gasto com Saneamento, por exemplo, deve entrar nas contas do setor, já que se trata de uma ação preventiva de Saúde Pública. Já a Emenda Constitucional considera o Saneamento como ação de Saúde, mas afirma que ele deve ser financiado por recursos tarifários específicos – portanto, não pode entrar no “bolo” dos investimentos próprios do estado para Saúde.
Em 2004, por exemplo, foram usados R$ 43,8 milhões da Saúde para ampliar os sistemas de água e esgoto da região metropolitana de Curitiba e do litoral. “As cotas que deveriam financiar o Saneamento não o fazem e isso acaba sendo custeado pela Saúde, acarretando em prejuízos para o setor”, afirma o procurador geral do Ministério Público, Marco Antônio Teixeira.
Para o MP, o estado erra também ao colocar no orçamento da Saúde despesas em serviços com recursos próprios. O Conselho Nacional de Saúde também vê distorção nisso. “Esses serviços são importantes para a melhoria da Saúde, mas é preciso que tenham fontes específicas de financiamento, de outras origens, e que não coloquem em risco a assistência à população, como prega a Constituição”, diz José Francisco Schiavon, membro paranaense do Conselho Nacional de Saúde e presidente da Federação dos Hospitais do Paraná.
De acordo com essa linha de raciocínio, R$ 7,7 milhões utilizados em 2004 para financiar a produção de vacinas não poderiam sair do orçamento da Saúde. Para aquisição, armazenamento e distribuição de medicamentos e serviços de hemoterapia e hematologia foram investidos R$ 2,4 milhões e R$ 85 mil, respectivamente.
Para o Ministério da Saúde e o MP, outro equívoco do governo estadual foi desrespeitar o princípio da universalidade e destinar recursos para a assistência a servidores públicos e militares, considerados grupos fechados. O governo gastou R$ 74 milhões nos serviços prestados aos funcionários públicos da Secretaria da Administração e Previdência e R$ 10,2 milhões para militares vinculados à Secretaria de Segurança Pública. “O estado acaba beneficiando um público determinado e prejudicando um outro muito maior”, diz Teixeira.
A Secretaria de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Suderhsa) também foi beneficiada com o dinheiro da Saúde. Foram gastos R$ 2,9 milhões em obras de drenagem para controle da erosão e das cheias, em encostas dos rios, manter, limpar e desassorear canais no litoral, poços artesanais para abastecimento doméstico, rural e industrial. O dinheiro foi usado ainda para recuperar áreas degradadas e fundos de vale, parques, estradas vicinais e pontes. A EC 29 não considera essas ações como serviços de Saúde.
“Governo dobrou orçamento da Saúde”
A Secretaria Estadual de Saúde (Sesa) contesta a auditoria que aponta investimentos do estado inferiores aos estabelecidos em lei e diz que o governo do Paraná tem investido maciçamente no setor. A secretaria informa que o orçamento da pasta mais que dobrou entre 2003 e 2005, passando de R$ 253,2 milhões para R$ 525 milhões.
De acordo com a Sesa, a falta de regulamentação da Emenda Constitucional 29 abre brechas para interpretações diferentes sobre o que é gasto em Saúde ou não. Um exemplo citado pelo órgão é o gasto com saneamento básico. A emenda diz que esses serviços devem ser financiados por recursos tarifários específicos, não podendo contar, portanto, como dinheiro da Saúde. Mas o governo entende que o gasto em Saneamento é uma ação preventiva de Saúde e que as tarifas e taxas arrecadadas são para a manutenção do serviço e não implantação de novos sistemas.
A EC 29 entrou em vigor em setembro de 2000 e ainda não foi regulamentada. Desde 2003, um projeto de lei que propõe a regulamentação tramita na Câmara Federal. A autoria é do deputado Roberto Gouveia (PT-SP).
Exemplo
A Sesa usa a Venezuela como exemplo. O país foi visitado no ano passado por uma comitiva do governo paranaense. A lição que trouxeram foi a de que embora o país tenha excelentes programas para a área, alguns problemas persistem e são insolúveis se não forem tratados na origem. A causa é a falta de um saneamento básico eficiente.
“Água tratada é como vacina. Dados da Organização Mundial da Saúde mostram que, para cada R$ 1 aplicado em saneamento básico, são economizados R$ 4 em despesas hospitalares”, argumenta o órgão, por meio de nota enviada ao jornal.
Segundo a secretaria, justamente por conta das discussões em torno na lei, o Paraná apóia a regulamentação da emenda 29, participando de diversas ações em Brasília a fim de definir os critérios do que é efetivamente gasto em Saúde. “A despeito desta regulamentação, o Paraná cumpre a emenda e estará cumprindo o que resultar na discussão do poder legislativo federal na lei regulamentadora”, informa a nota.