Pelo menos 800 mil mortes podem ter ocorrido em todo o mundo na última década devido ao uso de drogas receitadas rotineiramente para prevenir ataques cardíacos em indivíduos submetidos a cirurgias. É o que diz o estudo realizado em 23 países e publicado na revista científica "The Lancet".
O principal autor, Philip Devereaux, comparou o alto número de mortes ao de "uma guerra mundial".
Ele disse que o enorme índice de óbitos na análise foi causado pelas "boas intenções" de médicos em administrar drogas da classe dos betabloqueadores sem levar em conta seus efeitos adversos. O resultado é que elas custaram mais vidas do que salvaram, disse na revista.
O estudo diz respeito apenas ao uso em pacientes operados.
Drogas são comuns em todo o mundo
Os betabloqueadores costumam ser receitados a pacientes submetidos a cirurgias. O objetivo é reduzir o risco de um infarto depois da operação. A recomendação do American College of Cardiology (publicada em 1996 e seguida mundialmente) é de que esses medicamentos devem ser usados em todas as operações não cardíacas.
Mas o novo estudo envolvendo 8.351 pacientes operados em 190 hospitais de 23 países mostrou que a administração de betabloqueadores dobra o risco de derrame ou acidente vascular cerebral (de 0,5% para 1%) e aumenta o risco total de morte de 2,3% para 3,1%, comparado com placebo (substância inócua), em 30 dias após o procedimento.
De acordo com a pesquisa, os betabloqueadores reduziram a incidência de ataques cardíacos de 5,7% para 4,2%, mas os benefícios foram superados pelos efeitos colaterais do aumento de casos de derrame e morte.
Estima-se que são realizadas anualmente cem milhões de cirurgias não cardíacas em todo o mundo.
Embora os números absolutos sejam baixos, o impacto acumulado é grande.
– Mesmo que apenas 10% dos médicos tenham seguido as recomendações do American College, e essa é uma estimativa conservadora, cem milhões de pacientes teriam tomado betabloqueadores em operações na última década.
Baseado no nosso estudo, isso significa que 800 mil teriam morrido prematuramente e 500 mil sofrido um derrame. Pelos nossos dados, o índice de mortes é o de uma guerra mundial – disse o cardiologista e epidemiologista Philip Devereaux, da Universidade McMaster, em Hamilton, no Canadá, e líder do estudo.
De acordo com Devereaux, há evidências de que cerca de 40% dos médicos usaram rotineiramente betabloqueadores em cirurgias em algumas partes do mundo, o que quadruplicaria o número de mortes.
– Os médicos que deram essas drogas estavam cuidando de pacientes e aplicando conhecimentos clínicos. Mas descobrimos que em vez de prevenir problemas, elas podem provocá-los. Embora betabloqueadores tenham benefícios, eles causam mortes e derrames porque baixam a pressão – afirmou o pesquisador.
O corpo pode entrar em estado de choque depois de uma cirurgia, quando a pressão arterial cai. E, segundo o cardiologista, este efeito pode piorar com o uso de medicamentos betabloqueadores.
Em artigo na revista britânica "The Lancet", o autor diz que os pacientes que já tomam betabloqueadores para tratar problemas cardíacos deveriam continuar com eles na cirurgia. Nos pacientes sem doenças cardíacas, ele sugere o uso em baixas doses, começando uma semana antes da operação.
Lee Fleisher, professor da Universidade da Pensilvânia, discorda de Devereaux quando este afirma que o uso de betabloqueadores causou 800 mil mortes.
– Acredito que é o número é superestimado – disse.
Os betabloqueadores reduzem os efeitos nocivos dos altos níveis de substâncias chamadas catecolaminas e são indicados na fase perioperatória, que vai da entrada do paciente no hospital até a alta. Em 1% das operações não cardíacas ocorre graves complicações associadas a uma maior concentração das catecolaminas no organismo.
Elas aumentam a pulsação, a pressão sangüínea e os ácidos graxos.
Isso exige uma maior demanda de oxigênio.
No estudo canadense foram avaliados pacientes com arteriosclerose ou com o risco de sofrer deste problema submetidos a uma operação não cardíaca. Do total, metade recebeu o betabloqueador sucinato de metoprolol horas antes do procedimento até 30 dias depois. E a outra metade foi tratada com placebo.
Os próprios autores da pesquisa afirmam que é preciso realizar novos estudos para determinar o risco exato de usar os betabloqueadores numa operação e melhorar o tratamento.
Remédio é receitado em casos selecionados
Antônio Marinho
O Brasil foi um dos países que participaram do estudo realizado por Devereaux e sua equipe. Médicos brasileiros que tiveram acesso à parte da pesquisa afirmam que o uso de betabloqueadores em procedimentos cirúrgicos no país depende de cada caso. O cardiologista Fernando Cruz, responsável pelo Laboratório de Eletrofisiologia do Instituto Nacional de Cardiologia (INC), diz que a escolha deve ser individualizada.
Segundo o cardiologista, alguns pacientes podem necessitar do medicamento, outros não. Isto é decidido na análise da equipe médica, incluindo o anestesista. Mas, de maneira geral, no serviço público brasileiro não se costuma usar os betabloqueadores em cirurgias.
– Os betabloqueadores baixam a pressão e reduzem os batimentos cardícos. Isso pode ser potencializado por outras drogas da anestesia. É preciso selecionar os casos. No resumo do estudo canadense não fica claro quais foram os critérios para administrar ou não o bloqueador, de inclusão e exclusão no levantamento. Não sabemos se houve algum exame para detectar o risco prévio de derrame em pacientes estudados- afirma.
O cardiologista Augusto Bozza, vice-diretor do INC, diz que o medicamento tem sido usado em cirurgias quando o paciente já toma esta droga. É a principal indicação. Há recomendação também no pré-operatório de indivíduos que apresentam fatores de risco para doença coronariana. Mas, neste caso, não costuma ser aplicada na rotina em procedimentos no Brasil: – É preciso ver cada caso. Em idosos, se há dúvida, é melhor não indicar a droga na cirurgia. Se a pessoa já apresenta déficit de irrigação, a freqüência cardíaca pode cair com o uso da substância e isto pode causar isquemia. Nos casos de cirurgia de hipertireoidismo, betabloqueadores são indicados – diz Bozza. – No estudo canadense não fica claro a qual tipo de derrame o autor se refere.