A assistência psiquiátrica hospitalar foi o procedimento contemplado com o menor reajuste dado recentemente pelo governo. Mesmo a um olhar míope o fato não passaria como mera obra do acaso.
As ações da Coordenação de Saúde Mental apontam, há muito, para o desmantelamento do sistema assistencial psiquiátrico hospitalar.
Misteriosos movimentos capitaneados por psiquiatras e outros profissionais desinteressados da psiquiatria baseada em evidências, vêm, lentamente, engendrando a expropriação desses hospitais dos doentes mentais graves e, socialmente, pobres.
Poderosos, tratam de deixar essas unidades de saúde, mal financiadas, morrer, lentamente, como gado na seca.
Uma morte discreta, lenta, silenciosa, poderia haver forma mais criativa de extinguir?
Inteligente subtração essa, sorrateira, quase escondida, a transmitir a falsa impressão de que os hospitais psiquiátricos, por alguma razão própria desinteressaram-se de acudir e abandonaram suas posições.
Atarefados com outros afazeres, grandes psiquiatras nem percebem o absurdo que se passa diante de seus olhos.
A Associação Brasileira de Psiquiatria já foi a público, através da Imprensa, contra essa adoção pública de cuidar do doente fora dos preceitos científicos.
Jornalista atenta, não faz muito, mereceu Menção Honrosa no Trigésimo Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos ao publicar os artigos:"Sem hospícios, morrem mais doentes mentais" e "Governo não quer saber de quem ouve vozes" .
Em todo o mundo adiantado há hospitais psiquiátricos . Entre nós, os que atendem ao SUS estão sendo discretamente banidos . Atendem primordialmente aos pobres .
O não terem visibilidade social, doentes pobres, talvez até explique o aparente descaso geral diante desse tirar de quem já não tem .
Vertente mais acreditada da psiquiatria, a psiquiatria baseada em evidências, tem clareza da importância do hospital como parte do gradiente assistencial . Continuum que se desloca da mais elementar ação de saúde mental à mais complexa, a hospitalização . Assistimos, quase sem enxergar, à instalação de uma cultura contra-hospitalar .
Pobres não se internam, mesmo quando precisam . Aos ricos (nada contra eles), as clínicas particulares . Não se mostra incoerente, a autoridade sanitária, ao desaconselhar a uns o que permite a outros ?
Dos construtores dessa assistência saci-pererê ouve-se que se ocupam da criação de entidades substitutivas .
Poderia registrar aqui, imensa lista de doenças mentais graves e imaginar que psicólogo ou psiquiatra, sem incorrer em imperdoável falha técnica, aceitaria cuidar de algum deles sem recorrer à internação psiquiátrica ?
Programas de rádio e televisão especializados em violência social, diariamente, mostram lado a lado, evidentes doentes mentais e criminosos comuns, antes de seguirem todos para o cárcere.
Um dos mais renomados professores de psiquiatria, diz, não sem razão, que o maior sistema de atenção ao doente mental grave no Brasil é o sistema prisional .
Ao completar vinte anos de criação, o SUS precisa admitir equívocos cometidos, reformular-se, libertar-se de maus profissionais, e, aportando recursos financeiros suficientes, equiparar os hospitais psiquiátricos aos demais agentes, dando-lhes feições modernas para que continuem a ser o que são: instituições indispensáveis aos casos graves . Mas é preciso coragem!
Ulysses Pernambucano de Mello é Médico Psiquiatra de Pernambuco de Pernambuco.