Ministros da mais alta corte do país consideram acertada a decisão do governo de revisar a legislação. CNBB critica a iniciativa e alerta para o risco de não se valorizar a vida humana
A decisão do governo federal de criar um grupo para discutir modificações na legislação sobre aborto foi elogiada ontem por ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). E despertou forte reação contrária por parte da Igreja Católica. O presidente da CNBB (Confederação Nacional dos Bispos do Brasil), dom Geraldo Majella Agnelo, reafirmou sua posição contra a liberação do aborto e disse que esse tipo de discussão pode levar a um tipo de eugenia (ciência que busca o aprimoramento genético da espécie humana). ”Daqui a pouco, caso não se valorize a vida, teremos a eugenia e todos os que forem considerados pesados para a sociedade serão eliminados”, disse dom Geraldo.
No Supremo, o ministro Marco Aurélio Mello, relator de uma ação que discute o direito de interromper gestações de fetos com anencefalia, disse que ”a possibilidade de se legislar a respeito desse assunto é latente”. O também ministro do Supremo, Celso de Mello, afirmou que é extremamente necessária a reabertura das discussões sobre o tema. ”É preciso introduzir na legislação interna as posições avançadas assumidas pelo Brasil, como por exemplo, na Conferência de Direitos da Mulher, em Pequim”, disse.
Segundo ele, nas conferências internacionais, houve intensa participação do Brasil e concluiu-se que o aborto não pode ser usado como instrumento de controle de natalidade. ”Mas é necessário garantir à mulher o direito ao controle de sua fecundidade, com práticas seguras de aborto para proteger as mulheres, notadamente as de pouca capacidade financeira”, acrescentou.
Em fevereiro, o plenário do STF deverá concluir julgamento sobre a legalidade ou não da antecipação de partos de fetos com anencefalia, anomalia caracterizada pela ausência de massa encefálica que resulta na morte dos bebês ainda dentro do útero ou no máximo minutos após o nascimento.
Ministra defende a legalização
A ministra-chefe da Secretaria de Política para as Mulheres, Nilcéia Freire, disse ontem que a sociedade brasileira não pode mais adiar o debate em torno de mudanças na legislação sobre o aborto. Nilcéia reconheceu que o assunto é polêmico, mas considerou que este é um motivo a mais para discuti-lo. ”Há discussões de temas que são polêmicos na sociedade. A solução para eles não é escondê-los debaixo do tapete. É enfrentá-los democraticamente, ouvindo toda a sociedade. E é isso que estamos fazendo”, disse a ministra, assinalando que a abertura do debate é uma decisão de governo.
Ontem, a secretária de Políticas de Promoção da Igualdade Social, Matilde Ribeiro, apoiou a iniciativa. Matilde defendeu a legalização do aborto, alegando que as mulheres têm o direito de decidir se querem ou não interromper a gravidez, amparadas também por atendimento clínico. ”Parto do princípio de que a mulher tem de ter autodeterminação. Ninguém é obrigado a fazer aborto. Por isso eu, Matilde, defendo o aborto. Mas entendo que o nosso governo tem de debater”, disse a ministra.
A partir de janeiro de 2005 uma comissão formada por governo, Congresso e sociedade civil vai reavaliar o assunto. Então o grupo vai encaminhar as propostas ao Congresso Nacional. A legislação atual, a mesma desde a década de 40, estabelece que aborto é crime e pode resultar na prisão da mulher que interromper a gravidez. Só estariam liberadas as que ficaram grávidas em decorrência de violência sexual ou as gestações que colocam em risco de morte as mulheres.
Falta dinheiro para o pezinho
Erika Klingl
Da Equipe do Correio
O repasse de recursos do Sistema Único de Saúde (SUS) para os centros responsáveis pela realização do teste do pezinho está atrasado há quatro meses. Desde agosto, as faturas não são pagas pelo Ministério da Saúde. De acordo com José Alcides Marton, presidente da União Brasileira dos Serviços de Referência em Triagem Neonatal (Unisert), a descontinuidade de repasse de verbas coloca em risco a realização do teste.
”O exame depende de material, mas também de pessoal nos laboratórios e ambulatórios. Estamos sem dinheiro para pagar salários e contas de fim de mês, como o décimo-terceiro salário”, diz Marton. ”Como a maioria dos centros são entidades filantrópicas, não temos nem como recorrer a empréstimos bancários.”
Por conta
Desde agosto, os pontos públicos que realizam o exame estão gastando por conta da expectativa de depósito dos recursos. A dívida da União chegaria a R$ 15,2 milhões, segundo estimativas da Unisert. O teste do pezinho é custeado pelo SUS desde 1991. Atualmente, existem 33 centros credenciados pelo
Ministério da Saúde para fazer o teste.
Em onze estados, o responsável pelo exame é a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae). Como em Goiás e no Espírito Santo, onde a situação é ainda mais grave porque a Apae não tem a quem recorrer. No Distrito Federal, onde o centro de referência fica no Hospital de Base, a Secretaria de Saúde paga a conta e cobra do governo. ”Assumimos os custos do atendimento e informamos os gastos ao Ministério”, afirma José Rubens Iglesias, diretor de Controle e Avaliação da Secretaria de Saúde do DF.
Alcance
A cada ano, cerca de 2,3 milhões de bebês fazem o teste do pezinho. O número equivale a 76% do total de nascimentos no país. Pelo exame, são detectados 2.400 casos de crianças com alguma doença. A mais comum é o hipotiroidismo congênito, um distúrbio causado pela produção insuficiente de hormônios da tireóide.
O problema é que esses hormônios são fundamentais para o adequado funcionamento do sistema nervoso. Sem eles, pode haver uma lesão grave e irreversível que resulta numa doença mental. ”Quando os pais e médicos descobrem cedo a má-formação da tireóide, podem dar o hormônio por via oral e impedir as conseqüências da doença”, explica Marton.
Por meio da assessoria de imprensa, o Ministério da Saúde reconheceu o atraso no repasse dos recursos e informou que trabalha para pagar parte das parcelas na próxima semana. Também haverá um esforço para que o dinheiro chegue mais rápido aos centros.
Para saber mais
Antes que seja tarde
O teste do pezinho, que deve ser feito quando a criança tem entre três e sete dias de vida, permite que os médicos antecipem o diagnóstico de doenças. Sem o procedimento, realizado a partir de um pequeno furo no calcanhar do bebê para a coleta de sangue, há o risco de determinadas enfermidades só serem descobertas anos depois, quando já seria tarde para um tratamento eficaz.
A maioria das doenças é causada pela falta de alguma substância fundamental ao desenvolvimento sadio do bebê. No caso da fenilcetonúria, por exemplo, a criança deixa de produzir uma enzima que serve para digerir uma substância existente nas proteínas animais e que, em excesso, provoca lesões graves no sistema nervoso. Ao identificar cedo a doença, os médicos preparam uma dieta sem leite, carne e ovos, entre outros alimentos. A medida pode evitar que a criança desenvolva problemas mentais. Está na Constituição: todas as crianças brasileiras têm direito ao teste do pezinho.