contato@sindipar.com.br (41) 3254-1772 seg a sex - 8h - 12h e 14h as 18h

Hemoterapia sob risco

Está em vigência desde o dia 19 de fevereiro a Portaria 1.737, do Ministério da Saúde (DOU 162 de 23/8/2004, seção I, páginas 40 e 41). Sectária tentativa de estatizar a hemoterapia, a assistência hospitalar e, finalmente, toda a saúde no Brasil, sonho de influentes grupos, encastelados no Ministério da Saúde, antes mesmo do escândalo dos hemoderivados, que custou mais de US$ 2 milhões aos cofres públicos. Nivela-se a saúde no Brasil com o Sistema Único de Saúde (SUS), conhecido de todos nós.
A politização do sangue envolve graves riscos não considerados pelos seus implementadores
No seu artigo 1°: “O sangue e os hemocomponentes obtidos pelo SUS, diretamente nos serviços públicos ou em serviços privados contratados, serão destinados prioritariamente ao atendimento de usuários do próprio SUS”. Contempla-se, no papel, uma exceção; artigo 2º: “Quando a rede assistencial do SUS não possuir demanda” (??) “garantida a manutenção de um estoque mínimo de segurança”, oficial. Vale dizer: quando o sangue estiver com a sua data de validade quase vencida ou “em situação de emergência devidamente atestada pelo gestor público responsável”. Ou seja: se você tiver uma hemorragia, e for atendido num hospital da rede privada, mesmo filantrópico, que mantenha convênio com o SUS, mesmo que seus familiares tenham doado o sangue para você, mesmo em feriados ou à noite, para você ter sua vida salva por uma transfusão com sangue dos hemocentros, a urgência precisará ser “devidamente atestada pelo gestor público responsável”. Na prática, não receberá o sangue doado para você, mesmo internado em hospital privado se este receber sangue dos hemocentros. E são muitos os hospitais que recebem sangue dos hemocentros. Aliás, esta prática tem sido condenada como predatória concorrência gerida com dinheiro público. A aplicação desta lei criará também imprevisíveis dificuldades para as campanhas de recrutamento de doadores de sangue ou de órgãos. Afastará dos hemocentros os doadores e familiares que tenham convênio de saúde.
A história da hemoterapia no Brasil foi escrita com a luta de destacados hematologistas, de políticos e administradores idealistas que conseguiram impor e implantar extraordinária e competente rede pública e privada que se entendem, se respeitam e se completam. Orgulho da medicina brasileira, mas que ainda tem muito a desenvolver e a expandir, geográfica, social e cientificamente. As perspectivas descortinadas pelo domínio das células-tronco, o mais recente hemoderivado, impõem conjugação de esforços e que se decline de posturas sectárias e anacrônicas, se não quisermos ficar à margem deste extraordinário potencial terapêutico.
A politização do sangue, substrato ideológico desta portaria, envolve graves riscos não considerados pelos seus implementadores. São gestores de saúde, em vários níveis administrativos, agindo ora por conivência, ora por conveniência. Lá na França, essa visão cortou o sonho do então primeiro-ministro Laurent Fabius de suceder a Miterrand; condenou o honorável professor Roux, catedrático de medicina, senador pelo partido comunista francês; encarcerou por quatro anos o dr. Garretá, diretor do Serviço Nacional de Transfusão de Sangue, autor intelectual do scandale du sang.
Quando se injeta sangue na veia de um paciente há sempre o risco de se estar injetando uma doença. Todos que participaram do processo, direta ou indiretamente – todos os médicos, paramédicos, doadores, enfermeiros, diretores de hospitais, gestores de saúde pública ou privada -, juridicamente, assumem uma responsabilidade para o resto da vida do paciente e que não se extingue com a eleição ou com o mandato. A implantação, como está redigida, desta portaria envolve graves riscos para a rede pública, tumultos e dificuldades para a rede privada, desnecessários conflitos recíprocos e com hospitais e, sobretudo, insegurança para os pacientes nas urgências Os responsáveis pela implantação desta portaria, inclusive o ministro (registrado no Conselho Regional de medicina de Pernambuco sob o nº 6.926), que levou a Hemobrás para Pernambuco, deve saber que prioridade em medicina há que ser sempre a do paciente. Ao inverter este preceito ético, abre-se perigoso precedente, pois permite aos gestores e contratantes de saúde determinar a orientação das decisões médicas.
É resquício de populismo demagógico, inconcebível na edificação de uma moderna democracia no País.

O autor, Romeu Ibrahim de Carvalho, é Professor titular de hematologia da Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais