O escritor Autran Dourado publicou, pela editora da UFMG, o delicioso livro Breve manual de estilo e romance. Logo no início ele conta haver aprendido com um escritor que aprendeu com seu gato abocanhar um assunto, observando seu bichano permanecer imóvel horas a fio olhando fixamente para qualquer coisa que não se via no jardim. Subitamente, dá um salto e aparece com a presa nas garras.
Lembrei-me do inteligente texto de Dourado a propósito do drama semanal de abocanhar assunto para o artigo das terças-feiras. Pensava inicialmente em narrar-lhes a história que me foi contada pelo doutor Domício Beltrão acerca de determinado senhor chamado Benevides Polidoro, morador em Pequilândia, cuja mania é entesourar notas de um real, desprezando ostensivamente as de R$ 50, conduta que, segundo ele, entremostrava o estado de pobreza e quase miséria em que vive até hoje grande parte da população do Vale do Jequitinhonha. Fiquei igualmente tentado a comentar as primeiras escaramuças políticas do presidente reeleito e a corrida desabalada dos partidos e seus líderes, como bando de famélicos, em busca dos cargos mais palatáveis do ministério.
Eis que, de repente, surge a nota do Conselho Federal de Medicina (CFM) aprovando resolução que permite aos médicos suspender, em determinadas situações, tratamento de pessoas em estado terminal. O assunto palpitante e não menos polêmico ganhou primazia e a mim me pareceu útil abordá-lo para meditação dos leitores, especialmente para os católicos a circunstância de ter sido a manifestação do CFM imediatamente avalizada pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). O tema não logrou unanimidade. Quantos, estando em estado de proximidade com o desenlace fatal e suas respectivas famílias, desejariam encontrar na ortotanásia conforto e lenitivo para suas dores, tão agudizantes a ponto de causarem sofrimento psíquicos e morais inenarráveis. Afinal, dizem os tanatologistas, a morte é a continuação da vida, uma conseqüência natural projetada sobre quem viveu. Para os espiritualistas, encontrando consolo na certeza da imortalidade da alma para muito além do estado material do corpo em que se alojava, pouco em nenhum significado maior tem a morte, senão os padecimentos pela ausência de alguém a quem a estima e as afeições faziam próximo de quem fica.
Para os católicos, muito mais ainda, o entendimento da morte será o encontro com Cristo na parúsia, crença capaz de eliminar qualquer ressentimento em quem permanece. Na nota oficial da CNBB em favor da aplicação da ortotanásia, definida pelos léxicos como a morte, sem sofrimentos, os prelados citam palavras de João Paulo II para distinguí-la da eutanásia, definindo-a como a "decisão de renunciar ao chamado excesso terapêutico, ou seja, a certas intervenções médicas já inadequadas à situação real do doente", para concluir que "quando a morte se anuncia iminente e inevitável, pode-se em consciência renunciar a tratamentos que dariam somente um prolongamento precário e penoso da vida". As prudentes palavras do Santo Padre conduzem-nos a comentar o caso da norte-americana Terry Schiavo, que teve os aparelhos que a mantinham viva por mais de três lustros desligados, por ordem judicial requerida pelo marido.
Especialistas em direito penal discutem esses temas com natural paixão, especialmente a adoção da eutanásia como conseqüência natural da necessidade médica diante de situações irreversíveis na saúde do paciente. Mesmo a ortotanásia mereceu restrições de vários juristas brasileiros. O assunto deve ser discutido sem reservas ou restrições. Cada qual poderá, de repente, estar diante de situação que envolva pessoa de suas relações ou de sua família. As decisões de suspensão de medicamentos que apenas prolongam os padecimentos do doente, devem ser tomadas pelo próprio paciente em articulação com os que lhe são próximos. Em instância decisória final a consciência profissional do médico encarregado do acompanhamento do caso. Que essa decisão do CFM encoraje os médicos à pratica da ortotanásia com o aval da família ou, se for o caso, do doente com capacidade mental para tal deliberação. O que importa é sempre buscar, como continuação da própria vida, uma suave e boa morte.
Murilo Badaró, Presidente da Academia Mineira de Letras (AML)