Uma desculpa se junta aos muitos obstáculos que comprometem a qualidade dos serviços de saúde pública no país. Como se não bastassem os pretextos aos quais União, estados e municípios recorrem no jogo de empurra sobre as causas da deterioração do setor, sabe-se agora que a burocracia também conspira contra a população ao se proteger num legalismo de ocasião. Sob o argumento de que uma norma constitucional não foi regulamentada, as três esferas aplicam em saúde menos do que a lei determina.
A boa desculpa à mão é a controvérsia criada em torno da Emenda nº 29, que estabelece percentuais mínimos de aplicação de recursos próprios em saúde. Em 2003, conforme levantamento do Ministério da Saúde, deveriam ter sido aplicados em média 11% dos orçamentos no setor. O balanço dos estados é lamentável: 16 dos 27 governadores, ou 59,3% do total, simplesmente ignoraram a exigência. Das 5.539 prefeituras, 41,2% não cumpriram a lei. O próprio governo federal é conivente com a situação, ao adiar a regulamentação da lei. É na ausência do detalhamento que as duas esferas se protegem. E a própria União é relapsa com a saúde, ao cortar pelo menos R$ 2,5 bilhões do orçamento de 2005 em relação ao que foi aplicado no ano passado.
O nome da norma descumprida é Lei de Responsabilidade Sanitária, uma denominação pomposa e sem sentido para quem entra em filas para obter uma simples consulta ou é condenado à morte à espera de uma cirurgia. Num país com tantas emergências em saúde, o pretexto da ausência da regulamentação da Emenda nº 29 é um escárnio. A emenda completa meia década este ano, um tempo longo demais para tanta omissão nos três níveis da administração pública.
Ao divulgar os dados com as aplicações, o Ministério da Saúde anunciou que a União envia ao Congresso ainda no primeiro semestre a regulamentação esperada. Mas, pelo que se antecipa, a Lei da Responsabilidade Sanitária será bem mais branda do que a parente sua da área econômica, a Lei de Responsabilidade Fiscal, que trata dos limites de gastos dos governos com o funcionalismo. Irresponsabilidade social – ao contrário do que acontece com desobediências fiscais – não seria então caso de cadeia. Espera-se que a informação não se confirme, ou o Brasil terá mais um exemplar no seu já volumoso álbum de contra-sensos do setor público.