Inúmeros países possuem comissões consultivas de bioética. Na América Latina, o México é um exemplo. Em âmbito internacional, a comissão estadunidense e a francesa são as mais conhecidas. Pareceres, relatórios ou mesmo opiniões dos membros dessas comissões de bioética são reproduzidos e discutidos ao redor do mundo. Temas como a clonagem reprodutiva, as tecnologias conceptivas e a eutanásia já foram intensamente debatidos por alguns desses colegiados. O papel de uma comissão nacional consultiva de bioética é exatamente promover uma reflexão ampla e densa sobre temas de intenso conflito moral no campo da saúde e da doença.
Neste momento, o Brasil discute as regras de uma possível comissão nacional de bioética. Em 2002, houve uma tentativa relâmpago de instaurar uma comissão de bioética vinculada ao Ministério da Saúde, mas a proposta foi rapidamente esquecida. Em termos de formato, a controvérsia atual é pequena, pois bastaria seguir o exemplo internacional de colegiados acadêmicos, meritocráticos, multidisciplinares e com a devida representatividade de gênero, raça e deficiência. Há um certo esforço internacional de incluir no colegiado algumas das mais significativas representações religiosas de um País, por isso a participação de teólogos, rabinos ou pastores em diferentes comissões, como a italiana ou a francesa.
Mas se a dificuldade não está no formato dessas comissões, por que ainda não se instituiu uma comissão nacional consultiva de bioética no Brasil? Simplesmente porque ainda não se tem clareza sobre qual deva ser o seu papel e qual sua vinculação na estrutura do governo.
Há projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional que propõem que a comissão seja uma esfera de consulta do parlamento, ao passo que outros projetos propõem comissões independentes do Legislativo. Há os que entendem uma comissão nacional de bioética como uma esfera política de representatividade e não como uma instância acadêmica de reflexão e enfrentamento de temas de intensa controvérsia moral.
O relatório de uma comissão consultiva de bioética é um verdadeiro tratado sobre uma questão moral. Há documentos preciosos da comissão francesa sobre o estatuto do embrião, a pesquisa com seres humanos ou o uso das tecnologias conceptivas. O objetivo desses relatórios não é apresentar uma saída definitiva para os conflitos morais, mas simplesmente oferecer ferramentas teóricas e científicas para a tomada de decisão. O relatório constituiu-se, portanto, em um instrumento poderoso para o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, poderes que diariamente se confrontam com questões bioéticas.
Os temas bioéticos não estão somente na cabeça dos profissionais da saúde e dos operadores do Direito, principais personagens de enfrentamento cotidiano das questões bioéticas. Na verdade, temas como o direito de morrer ou de planejar a reprodução faz parte da vida de todas as pessoas. Quando um juiz se depara com um processo de um doente terminal em que a família deseja cumprir seu testamento de não ser mantido em condições artificiais de sobrevivência, mas que a equipe de saúde insiste na obstinação terapêutica, esse não é um processo solitário de um homem, sua família e a equipe de saúde. Esse é um tema que diz respeito a todos nós, indiferente às nossas crenças religiosas.
Há alguns pressupostos éticos para a composição de uma comissão nacional de bioética no Brasil. Os mais importantes são a garantia do caráter laico, plural e democrático da sociedade brasileira nos pareceres da comissão. Os trabalhos da comissão devem ser marcados pelo confronto argumentativo, pelo debate razoável e, principalmente, pelo exercício contínuo da tolerância moral. A tomada definitiva de decisão não caberá à comissão nacional de bioética. Ao contrário, sua missão é promover condições reflexivas para que os tomadores de decisão possam lidar com o conflito moral. Mas assim como não há uma única resposta para os conflitos morais, a comissão deverá sempre enfrentar a diversidade de perspectivas e registrá-las, refutá-las ou adotá-las quando for o caso.
Debora Diniz é doutora em Antropologia e professora da Universidade de Brasília.