Ao longo desta campanha eleitoral, os candidatos a prefeito de Curitiba sempre ressaltaram a necessidade de construir mais unidades de saúde e de contratar mais médicos. Mas um dos grandes desafios para o próximo governante municipal é tentar reverter o alto índice de internamentos por transtornos mentais da cidade – um assunto que pouco apareceu no debate político. De acordo com os dados mais recentes do Sistema Único de Saúde (SUS), os distúrbios mentais e comportamentais foram as causas de 10,9% do total de internamentos na cidade em 2006, perdendo apenas para gravidez e parto, que somaram 17,1%.
Com esse desempenho, Curitiba pode ser considerada a capital brasileira dos transtornos mentais, que englobam todos os tipos de vícios – de drogas e de álcool são os mais comuns –, e doenças como depressão, esquizofrenia, síndrome do pânico, bipolaridade, problemas alimentares etc. Em nenhuma outra capital esses distúrbios foram a causa de tantos internamentos.
A gravidez e o parto são sempre o principal motivo para se procurar um hospital, e, nas outras capitais, na segunda e terceira colocação costumam figurar doenças dos aparelhos circulatórios ou respiratórios. Na maior parte das capitais, os transtornos não costumam passar de 5% das causas de internamento.
Outro dado preocupante é a incidência de transtornos em boa parte da população economicamente ativa de Curitiba. Na faixa dos 20 aos 49 anos, eles foram a causa de 17,2% do total de internamentos – também perdendo apenas para parto, com 24,5%. Entre as outras capitais brasileiras, apenas o Rio de Janeiro também tem os distúrbios como segunda principal causa de internamento nesta faixa etária, mas em proporção bem inferior: 9%.
Absorção
De acordo com a diretora do Centro de Controle, Avaliação e Auditoria da Secretaria Municipal de Saúde, Anna Paula Penteado, Curitiba tem um grande número de leitos psiquiátricos e acaba absorvendo pacientes de regiões onde a oferta desse serviço é inexistente. Nas regionais de Saúde de Paranaguá e de União da Vitória, com sete e nove municípios, respectivamente, não há nenhum hospital psiquiátrico. Nos últimos anos, hospitais psiquiátricos de São José dos Pinhais (na região metropolitana) e Ponta Grossa (Campos Gerais) fecharam as portas – assim como o Hospital Nossa Senhora da Glória, em Curitiba.
Tudo isso é decorrência de uma política nacional de priorizar o atendimento psiquiátrico em hospitais-dia e nos Centros de Atendimento Psicossocial (Caps), os quais devem ser ofertados pelas prefeituras, o que representa a vitória da luta para que os pacientes não sejam trancafiados em manicômios.
Em Curitiba, há 538 leitos do SUS, o que representa quase 40% da oferta estadual. A cidade conta ainda com 390 macas de hospitais-dia e outros tantos de instituições privadas – a conta final é de 1,4 mil leitos destinados a pacientes psiquiátricos.
Mas a concentração de leitos em Curitiba não parece justificar o alto número de internamentos por transtornos. Em Salvador, por exemplo, onde estão 61% dos leitos psiquiátricos da Bahia, apenas 3,2% dos motivos que levaram as pessoas a permanecerem nos hospitais foram os distúrbios mentais.
Os dados do SUS sobre as causas de internamentos levam em conta o local de residência das pessoas, e não o local do hospital. Sabe-se que é comum pacientes de outras localidades emprestarem endereço de conhecidos como forma de fingirem que moram
Ainda não há respostas claras sobre os motivos que levaram a cidade a se tornar a capital dos transtornos, mas algumas hipóteses apresentadas à reportagem, em entrevistas e conversas informais, apontam também para possíveis virtudes do sistema de saúde curitibano: a capacidade dos agentes do setor em detectar problemas e transtornos que em outras cidades não são diagnosticados.
Faltam leitos para doente mental
A mudança no modelo de assistência à saúde mental no Brasil deveria ter resultado na criação de uma rede descentralizada de atendimentos, longe dos antigos hospitais psiquiátricos. Hoje, porém, o que se constata é a falta de serviços especializados para receber os pacientes. Os 1.202 Centros de Atenção Psicossocial (Caps) – principal recurso terapêutico -, por exemplo, representam uma cobertura de 0,51 unidades por 100 mil habitantes, pouco mais de 50% do necessário. Esse não é o único problema. A relação de leitos destinados a pacientes psiquiátricos em hospitais-gerais no País é de apenas 0,25 por mil habitantes, quando deveria ser de, no mínimo, 0,45, segundo definições da Política Nacional de Saúde Mental.
O resultado dessas carências é a criação de uma demanda reprimida por tratamento adequado. Ou seja, pessoas que não recebem a atenção necessária. "A expansão está se dando de forma lenta, pois ainda há dificuldades em instalar esses leitos", reconhece Karime Porto, da área de saúde mental do Ministério da Saúde. O Estado de São Paulo, com mais de 39 milhões de habitantes, tem hoje 482 leitos . O número de Caps também é pequeno: 183, o que equivale a 0,43 por 100 mil habitantes. Entre os 27 Estados, São Paulo ocupa a 17ª posição no ranking da relação entre Caps e habitantes. Sergipe, com quase 2 milhões de habitantes e 25 Caps, está no topo, com 0,90.
Para reavaliar pelo menos uma das necessidades do sistema, o Ministério da Saúde criou grupos de trabalho para acompanhar a implantação de leitos psiquiátricos
Consumo maior de crack faz crescer os internamentos
Um dos motivos que poderia explicar o grande número de internamentos por transtornos mentais e comportamentais em Curitiba é o uso do crack, droga cujo consumo e apreensão tem crescido bastante na cidade, assim como em todo o Paraná.
Em 2006, por exemplo, foram apreendidas 685 mil pedras de crack em todo o estado. No ano seguinte, esse número dobrou, de acordo com dados do Narcodenúncia, serviço telefônico para o recebimento de denúncias sobre drogas, mantido pelo governo estadual. “Esse indicador é altamente preocupante. Os usuários dessa droga precisam muito de internamento, pois ficam muito transtornados”, diz o diretor do Hospital Psiquiátrico Nossa Senhora da Luz, Dagoberto Requião.
Para ele, com a nova política de saúde mental do Ministério da Saúde, está cada vez mais difícil tratar viciados. “É muito difícil segurar essas pessoas em um hospital. Nos Caps (Centros de Atendimento Psicossocial, mantidos pela prefeitura) fica inviável.” Nesses centros, a pessoa passa alguma horas por dia, realizando atividades terapêuticas. Como a pessoa vai para casa no fim do dia, o convívio social e familiar fica garantido, o que é apontado como uma das maiores vantagens do novo sistema. Mas, para o médico, os Caps deixam a desejar. “Eles não têm estrutura nem condição para atender determinadas patologias.”
Como médico psiquiatra, Dagoberto Requião aponta alguns caminhos que o próximo prefeito pode adotar nas políticas públicas de saúde. “O ideal é um trabalho de campo extenso, para identificar prematuramente os problemas. Hoje, temos uma prevenção apenas terciária. Precisamos de prevenção primária, de equipes atuando na identificação das doenças.” Além disso, diz ele, nos casos de transtornos mentais, é preciso investir em tratamentos clínicos pós-hospitalares. “Nenhum internamento em dependência química resolve. Ele possibilita que o paciente tenha melhores condições para continuar com o tratamento posteriormente.”
Multidisciplinar
“Curitiba está na rota do tráfico. A gente vê ele agindo na cidade. Mas a questão do usuário é muito complicada. Não podemos trabalhar com a repressão, mas sim com educação. E na cidade não há um lugar ideal para encaminhar pessoas que abusam das drogas. Não há uma instituição que faça o acompanhamento contínuo dessas pessoas”, afirma a médica Rita Esmanhoto, professora do Departamento de Saúde Comunitária da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Segundo ela, é muito comum ouvir esse tipo de queixa dos pacientes que circulam diariamente pelo Hospital de Clínicas, onde ela atua.
Rita, que participou da criação da Secretaria Municipal de Saúde, em 1986, avalia que a ampliação dos cuidados de saúde mental é um grande desafio para o prefeito que for eleito em outubro. “Não é preciso, necessariamente, ampliar a estrutura hospitalar. Depende muito mais de estrutura clínica. O ideal é contarmos com uma equipe multidisciplinar.” Para ela, tanto o modelo de Caps atual, como os hospitais psiquiátricos, não atendem de forma adequada ao paciente com dependência química.
Novo prefeito tem de investir nas especialidades e no saneamento básico
A médica Rita Esmanhoto, que atua no Hospital de Clínicas, vê de perto o sofrimento das pessoas que precisam esperar por meses antes de conseguir uma consulta com um especialista. “A gente sabe de algumas especialidades em que o tempo até ser atendido é de um ano. É um problema que ocorre há alguns anos, mas vem se agravando”, afirma. Segundo ela, a redução dessa espera por médicos especializados deve ser uma das prioridades do próximo prefeito na área de saúde. “Não precisamos de novas estruturas. Acho que, se houvesse um diálogo maior com todas as instituições que estão envolvidas nesse processo de consulta especializada, a situação ficaria melhor.”
Para o professor Carlos Mello Garcias, do curso de Engenharia Ambiental da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), o sistema de saúde precisa oferecer atendimento especializado, mas não pode esquecer de serviços básicos de saneamento. Segundo ele, é fundamental que todos os governantes se comprometam com a Agenda 21, um plano de ações ambientais que institui novos padrões de desenvolvimento e que foi firmado no Rio de Janeiro em 1992, durante a Eco-92.
“Não adianta construir várias unidades de saúde. Isso não vai adiantar nada se a criança vive em uma área com condições insalubres”, diz Garcias. “Em duas semanas, ela volta de novo para o posto de saúde, e de nada vai adiantar encontrar ali equipamentos de alta tecnologia ou muitos médicos.” Para o engenheiro ambiental, é inadmissível que cidades desenvolvidas ainda registrem mortes por diarréia. “Isso é morrer por causa da sujeira. Não deveria acontecer.” Em Curitiba, a taxa de mortalidade por diarréia em menores de cinco anos foi de 1,17 em 2005 – o quinto melhor índice entre as capitais brasileiras.