Só há lugar para um em cada três pacientes que demandam tratamento em unidades de terapia intensiva. Opta-se geralmente pelo mais jovem, estatisticamente com mais chances de sobreviver. Os outros dois esperam a morte nos corredores.
Esta roleta tem gerido a rotina dos últimos meses nos grandes hospitais do Nordeste, que vive a pior crise na saúde pública da última década. A região mais aquinhoada pela expansão do Bolsa Família, com metade dos benefícios do país, é também a mais castigada pela falta de rumo da política nacional de saúde.
Padece mais do que o resto do país pelo grau de dependência do Sistema Único de Saúde, saudado, desde a criação, como um dos mais engenhosos modelos de saúde pública do mundo, mas nunca aquinhoado com os necessários recursos. Na maior parte da região, menos de 10% da população têm acesso a planos de saúde. No Piauí e no Maranhão, a cobertura não chega a 5%. No Sudeste, o percentual da população com acesso à saúde privada aproxima-se de 40%. No Distrito Federal, a cobertura de planos de saúde alcança 60% dos idosos.
A crise nos hospitais nordestinos foi deflagrada por médicos que se demitiram em protesto contra salários que, depois de oito anos de congelamento, correspondem a menos de um terço do piso nacional da categoria. O Hospital da Restauração, no Recife, a maior unidade de atendimento emergencial da região, chegou a funcionar com um sexto de seu efetivo. Num Estado em que a violência é a segunda causa de morte, foi preciso recorrer a neurocirurgiões militares para garantir atendimento.
Na Paraíba, destino de muitos dos pacientes em estado mais grave, transferidos até de helicóptero, alguns hospitais receptores já trabalhavam com 40% acima de sua capacidade. Num desses hospitais , de 300 leitos, um único raio-X estava em funcionamento.
Em Alagoas, onde a crise já completa três meses, o secretário de Administração, Adriano Soares, diz que o gasto com pessoal já responde por 75% de todo o custo de saúde do Estado. Para fazer face ao aumento pedido pelos médicos, ameaçaria a Lei de Responsabilidade Fiscal, vetando o acesso do Estado aos recursos do PAC.
Reivindica para a saúde um piso nacional com complementação do Tesouro nacional, a exemplo do que foi proposto para a segurança pública. O problema é que, no caso da segurança, os custos com salário serão, paulatinamente, assumidos pelos Estados que já reclamam pressão excessiva de custos.
Estudo do Banco Mundial sobre o SUS, divulgado em fevereiro, mostra que, das 27 unidades da federação, apenas sete cumprem o patamar de gastos com a saúde previstos pela emenda 29 12% do total da receita. No mesmo estudo, no entanto, vê-se que, ainda assim, entre 1995 e 2004, Estados e municípios tiveram uma evolução com gastos em saúde superior à da União.
O ministro da Saúde, José Gomes Temporão, que tem enfrentado combates do Vaticano às gôndolas de supermercado, lançou como saída à crise do SUS, o projeto das fundações públicas de direito privado. A proposta já sofreu o primeiro revés no Supremo, que rejeitou a contratação pela CLT na prestação de serviços essenciais do Estado, e ainda está por se mostrar suficiente para reverter o drama do financiamento do setor no país.
Tome-se, por exemplo, o que acontece hoje no Instituto Materno Infantil Professor Fernando Figueira (Imip). Encravado num dos bairros mais carentes do Recife, tem o maior número de UTIs do Nordeste e é o único da região a fazer transplantes renais em crianças. É uma fundação, desde que foi criado, há 47 anos. Seu superintendente, Antonio Carlos Figueira, diz que o modelo permite mais agilidade nas licitações e contratações, além de ter seus aposentados na conta do INSS. Muito embora não pague salários acima da média do Estado, atrai profissionais pelas condições de trabalho.
Mas a reputação de que goza a instituição não é suficiente para atrair recursos privados 95% de toda a receita do Imip vêm do SUS. E a instituição, que conta com uma diária efetiva de UTI de R$ 1,2 para um repasse de R$ 250 do SUS, já tem o décimo-terceiro salário deste ano sob ameaça.
Além de não ser a panacéia para a saúde, o projeto das fundações em nada resolverá o drama dos hospitais, se a crise de financiamento do SUS não for equacionada. Os avanços na saúde pública, como a redução da mortalidade infantil e a universalização da cobertura de vacinação, têm acontecido, em grande parte, porque não dependem de procedimentos hospitalares.
O desempenho do sistema nacional de saúde, segundo o Banco Mundial, deixa o país em 128º lugar, numa lista de 191 países. Na América Latina e no Caribe, o país está em 28º lugar entre 33. Os gastos globais com saúde pública no país caíram na última década. A renovação da CPMF garante apenas 30% dos recursos do setor e não evita que a saúde venha a enfrentar um apagão que, restrito à maioria, eclodirá em silêncio.
Maria Cristina Fernandes é editora de Política.
Escreve às sextas-feiras no Valor Econômico