Em 2005, Estados pagaram pelo menos R$ 285 milhões extras por drogas não disponíveis em farmácias públicas
Com a receita na mão, o doente procura o sistema público de saúde. Ouve um "não": o remédio indicado – normalmente muito caro – está em falta, não faz parte da lista de distribuição do governo ou ainda não existe no Brasil. Decide, então, recorrer à Justiça.
O inconformismo tem dado resultados. Só no ano passado, decisões judiciais forçaram os governos estaduais a desembolsar pelo menos R$ 285 milhões em remédios de alto custo – o equivalente a 30% dos gastos com os medicamentos do Programa Nacional de Aids em 2005. A cifra é resultado de um levantamento feito pelo Estado em todo o País – 17 dos 27 Estados responderam.
A prática está se tornando cada vez mais freqüente. Entre 2004 e 2005, o número de mandados judiciais em Goiás subiu de 72 para 216. No Paraná, os gastos extras com remédios saltaram de R$ 3 milhões para R$ 7 milhões.
Embora os Estados tenham programas de distribuição de remédios de alto custo, é comum que as farmácias públicas sofram de desabastecimento. A decisão da Justiça salva vidas. Foi o que aconteceu com o aposentado Irineu Trazzi, de 69 anos, que não encontrou um remédio imprescindível para o coração. Ele havia sofrido um enfarte, colocado uma ponte de safena e passado por uma angioplastia.
"Passei um nervoso, comecei a misturas as bolas", diz ele, lembrando a reação ao saber que teria de tirar R$ 230,00 todo mês da aposentadoria de R$ 500,00 para comprar a droga. Uma advogada conhecida da família o ajudou a entrar na Justiça. "Ao todo, recebo sete remédios. Se pagasse, não teria dinheiro para comer."
SEM DISTINÇÃO
A busca por remédios via Justiça independe de classe social. Mesmo quem tem melhores condições muitas vezes aciona o governo para reivindicar medicamentos de última geração porque os custos são elevadíssimos ou porque ainda não chegaram ao Brasil. Neste caso, se a Justiça determina, o Estado é obrigado a importar o produto.
A aposentada Célia Y., de 61 anos, soube que só conseguiria controlar o câncer de pulmão se combinasse a quimioterapia com um remédio de alta tecnologia, o Iressa, que ainda não pode ser comercializado no País. Importada, a droga sai por R$ 7 mil todo mês. "Os dois primeiros frascos, eu comprei. Torrei a minha economia de anos", conta. Diante da situação insustentável, foi à Justiça, sem se preocupar com o fato de o remédio ainda não ter a licença da Ministério da Saúde. "Ou você toma e arrisca viver, ou você não toma e morre."
Nos próximos meses, a indústria farmacêutica deve lançar no mercado brasileiro pelo menos 15 drogas só contra o câncer. Uma velocidade difícil de ser acompanhada pelo Sistema Único de Saúde (SUS). "É complicado dizer ao paciente que o ideal é um tratamento ao qual ele pode não ter acesso", diz Olavo Feher, um dos diretores do Hospital do Câncer, de São Paulo.
As primeiras conquistas foram conseguidas no início do anos 90 pelos doentes de aids. Diante das sucessivas vitórias, o governo chegou à conclusão de que seria mais racional criar o Programa Nacional de Aids. Hoje, todos os doentes têm acesso aos anti-retrovirais. Como os remédios passaram a ser comprados em larga escala, o governo consegue preço mais baixos.
A aposentada Adriana Comino Kizar, de 69 anos, recebe do governo de São Paulo o Avastin,contra o câncer. Diante dos absurdos R$ 14 mil mensais necessários para importar a droga, ela recorreu à Justiça, mas sem convicção. Para sua surpresa, o remédio veio. E o tumor, que do cólon havia chegado ao pulmão e ao fígado, se estabilizou. "Passei o telefone da minha advogada para três pessoas da clínica onde faço quimioterapia. Para conseguir as coisas no Brasil, a gente tem de ser um pouquinho agressiva."
Secretários preparam lei nacional para limitar ações
Na tentativa de frear a onda de ações judiciais, secretários de Saúde estão prestes a concluir um projeto de lei que proíbe os juízes de conceder mandados de segurança em que os doentes pedem remédios estrangeiros ainda não liberados pelo Ministério da Saúde. Assim que forem acertados os últimos detalhes da redação, o projeto será levado ao Congresso.
"Muitos remédios ainda nem tiveram os efeitos comprovados", diz João Gabbardo, secretário-substituto da Saúde do Rio Grande do Sul. Ele cita o caso de laboratórios multinacionais que fazem experimentos com brasileiros. Quando a pesquisa acaba, os pacientes passam a exigir do Estado que as drogas continuem sendo entregues. "Por causa disso, somos obrigados a gastar R$ 1,2 milhão por ano só com 12 pessoas que têm uma doença genética. E o remédio nem foi aprovado."
A lista de medicamentos de alto custo do Sistema Único de Saúde (SUS) tem hoje cerca de cem drogas. Por causa das ações, os governos são obrigados a fornecer mais de 2 mil tipos. Outro problema apontado pelos secretários é o fato de muitos doentes não aceitarem remédios da lista do SUS e exigirem similares mais caros. "Não somos contrários à busca pelo direito. Mas temos de racionalizar essa ação", diz Luís Fernando Ribas, diretor do Centro de Medicamentos do Paraná.
Em São Paulo, o governo gastou R$ 200 milhões em remédios comprados por ordem da Justiça em 2005. O valor é mais alto que a soma de todos os demais Estados. "Por causa desses gastos, que não estão previstos no Orçamento, diminuo o ritmo de uma obra, deixo de incrementar o Programa Saúde da Família. Tenho de tirar o dinheiro de algum lugar", diz o secretário Luiz Roberto Barradas Barata.
No ano passado, o Tribunal de Justiça do Rio determinou a prisão do secretário estadual de Saúde por desobedecer uma ordem judicial que determinava o fornecimento de medicamentos a um paciente. Como acabaram sendo entregues, a prisão foi suspensa.
Os laboratórios admitem que a divulgação de novidades alimenta a onda ações. "Mas os doentes também têm informações sobre os remédios que há lá fora. Têm o direito de exigi-los. O problema é que demoram para ter licença aqui", diz Gabriel Tannus, presidente da Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa.
“Direito de todos, dever do Estado”
Para conseguir que os tribunais obriguem os Estados a pagar seus remédios, os doentes usam como argumento o artigo 196 da Constituição, que diz "a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação".
"Isso inclui exames, hospitalização e remédios, sejam eles quais forem, do mais caro quimioterápico a uma simples aspirina", diz a advogada Rosana Chiavassa. Esse direito foi o tema da cartilha O SUS Pode Ser o seu Melhor Plano de Saúde, distribuída recentemente pelo Instituto de Defesa do Consumidor (Idec).
"São poucas as pessoas que conhecem esse direito", afirma o advogado Carlos Eduardo Valdejão. "Quando sabem, acham que existem critérios de distinção entre os cidadãos. Não há. O direito é absoluto."
Para entrar na Justiça, o doente precisa ter um advogado. Caso não tenha condições financeiras, pode recorrer à Procuradoria de Assistência Judiciária de seu Estado, que dá assessoria gratuita. É preciso ter a indicação do remédio fundamentada pelo parecer de um médico.
Para obter um resultado imediato, os advogados entram com mandados de segurança. Se o juiz considerar que o doente precisa mesmo do remédio – o que nem sempre ocorre -, ele concede uma liminar que obriga o governo a fornecer o medicamento até o julgamento final do caso.
O Ministério Público também entra com ações semelhantes a favor de grupos de doentes. "Em 2004, conseguimos que o Estado passasse a fornecer dois importantes remédios para os doentes de hepatite C", lembra o promotor José Paulo França Piva, de São Paulo.
Os medicamentos básicos devem ser fornecidos pelas prefeituras. As drogas de alto custo, pelos Estados. O Ministério da Saúde ajuda prefeitos e governadores na compra desses medicamentos.