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Saúde e livre mercado

            Estar livre de doença não assegura ao indivíduo o bem-estar físico, mental e social que define sua saúde. Pode ajudar, mas não garante. A vida saudável depende muito mais de cuidados qualificados do que de tratamentos. Saúde não é artigo que se distribua, mercadoria que se compre ou ação que se venda. É direito do cidadão e dever do Estado. Não há empresa que forneça direitos, nem agências que terceirizem deveres.

 

            A fruição plena do direito à saúde é incompatível com a sociedade de livre mercado. O modelo de relações humanas que nela prospera exclui garantias sociais desvinculadas de interesses econômicos. Só admite benefícios passíveis de rentabilidade imediata na dinâmica do lucro e da vantagem pecuniária. Os princípios éticos passam longe dessa visão de mundo.

 

            Os fundamentos doutrinários do SUS contrariam as regras do modelo econômico em vigor. Por isso, não saem do papel nem dos arroubos retóricos dos militantes do sanitarismo tropical. O Estado minimalista da economia globalizada não tem lugar para edificações sanitárias desse porte. O investimento em saúde pública será sempre limitado, priorizando políticas fundadas em procedimentos simplificados, de baixo custo e quase nenhuma capacidade resolutiva. O financiamento do SUS manter-se-á irrisório, cada vez mais insuficiente para a qualidade de um sistema público que se pretende exemplar. Sua rede de serviços naufraga, sem salva-vidas, no oceano da penúria de recursos humanos e materiais.

 

            Tanto quanto o privado, o setor público nega direitos aos cidadãos. Não lhes propicia, em grau de igualdade, os instrumentos científicos e tecnológicos apropriados à promoção da saúde nem investe nas medidas preventivas eficazes. A proteção do crescimento e desenvolvimento da criança e do adolescente não tem a prioridade que sua dimensão social justifica. Pouca importância se lhe dá no planejamento das ações de governo. O Programa de Saúde da Família, estratégia concebida para ampliar o acesso de populações periféricas aos cuidados de saúde, expandiu-se rapidamente, tornou-se irreversível, mas carece de qualidade. Ignora o direito de crianças e adolescentes. Desconhece as complexas peculiaridades do ciclo de vida humana marcado por profundas transformações bio-psico-afetivas e emocionais de cujo transcurso normal decorre a saúde do adulto. Banaliza as singularidades fisiológicas e comportamentais desse grupo etário a ponto de confiar os cuidados de sua saúde a profissionais sem a formação diferenciada a que tem direito.

 

            O pretexto é a integralidade da assistência, mas a meta inconfessável é a economia de recursos financeiros. Quanto mais barato melhor. O que conta é a redução de gastos. Saúde não é negócio que atrai investimentos externos. Nem aplicações nas bolsas de valores. As políticas públicas do setor têm de ser restritivas, sob pena de diminuírem o superávit primário e aumentarem o risco Brasil. Não surpreende que, num país onde a metade da população é constituída de crianças e adolescentes, a principal estratégia de atenção à saúde exclua a pediatria. O resultado não poderia ser pior, posto que associa a baixa capacidade resolutiva da assistência primária à sobrecarga das unidades de pronto atendimento. É a miopia dos planejadores, a insensibilidade dos dirigentes, o desrespeito às camadas pobres da população. É a falta de ética de gestores que negam aos filhos dos outros a qualidade do atendimento que reservam aos seus.

 

            No setor privado, a lógica do livre mercado é ainda mais ostensiva. Os procedimentos complexos que enriquecem a indústria da doença têm remuneração privilegiada pelos planos e seguros de saúde. As consultas clássicas, minuciosas, demoradas, atentas, os momentos de diagnóstico clínico e orientação terapêutica já não têm qualquer valor. Sua remuneração é simbólica, aviltante, incompatível com a sobrevivência do profissional. Por isso, os verdadeiros clínicos, tanto de adultos quanto de crianças, tornam-se raros. As especialidades reinam soberanas. Os pediatras começam a sair de cena. Seu trabalho educativo e preventivo não interessa aos agentes financeiros que operam a assistência médica no país. Criança e adolescente não engordam o PIB.

 

            Entregar os destinos da saúde à selvageria do livre mercado é curvar-se à sanha insaciável das empresas que exploram a doença e ao engodo de políticas públicas reducionistas impostas por organismos financeiros internacionais que só conhecem a cor do dinheiro. O Estado pode ser minimalista em tudo, menos na saúde e na educação.

 

Dioclécio Campos Júnior é Médico, professor titular da UnB, presidente da Sociedade Brasileira de Pediatria (dicampos@terra.com.br)