Regra que vincula gastos do governo federal na área com crescimento do PIB não é observada
Quase quatro anos depois de promulgada a emenda constitucional que vinculou os gastos públicos na área de saúde, o governo federal e os Estados já acumulam uma dívida social de pelo menos R$ 7,7 bilhões em recursos que não foram aplicados como previsto no texto da Constituição. No caso da União, os investimentos em saúde já chegaram a cair de 1,88% do Produto Interno Bruto (PIB) em 1999, um ano antes da emenda, para 1,79% em 2003, no primeiro ano da administração Lula, apesar de teoricamente estarem atrelados ao produto da economia do País.
A chamada emenda Serra, uma alusão ao então ministro da Saúde, estabelece que a União aumente seus gastos com saúde na mesma proporção do crescimento nominal do PIB. Mas para o ano de 2000 estipulou um crescimento de apenas 5% nos gastos de saúde, enquanto o PIB cresceu em valores nominais 13,08%. Nos anos seguintes, o governo se utilizou de sucessivas estimativas defasadas do PIB para fazer as correções anuais do “piso”.
Como resultado, o governo federal aplicou na saúde R$ 1,45 bilhão a menos do que previa a emenda. Só no ano passado, a diferença apontada pelo Tribunal de Contas da União (TCU) chegou a R$ 597 milhões. Utilizando como parâmetro o gasto de 1999 em relação ao PIB, a “dívida” é maior ainda: R$ 1,37 bilhão em 2003 ou R$ 2,52 bilhões no somatório dos últimos quatro anos. Em 2004, se tudo ocorrer dentro do previsto, o Ministério da Saúde pretende recompor R$ 1,17 bilhão desse passivo, investindo 1,93% do PIB em saúde.
No caso dos Estados, apenas uma minoria de governadores tem cumprido as metas mínimas previstas na Constituição. Pela emenda, os gastos de saúde dos Estados deveriam crescer progressivamente até atingir 12% de suas receitas até o final de 2004. No ano passado, por exemplo, os governadores deveriam ter aplicado em saúde 10,54% do que arrecadaram, mas não passaram em média dos 8,55%, de acordo com estudo da Confederação Nacional dos Municípios (CNM). Até mesmo Estados mais desenvolvidos, como o Paraná, ainda estão na marca dos 5% de investimento em saúde. O governo paulista deveria já ter aplicado 10,99% no ano passado, mas atingiu apenas 9,05%. No total, os Estados acumulam desde 2000 uma dívida de R$ 6,2 bilhões com a área de saúde. Apenas sete dos 27 governadores cumpriram a emenda em 2003.
“No ano passado, os Estados tiveram o mau exemplo do governo federal e ficaram animados em não cumprir a emenda”, ironiza o deputado Rafael Guerra (PSDB-MG), presidente da Frente Parlamentar da Saúde, ao lembrar a tentativa do Palácio do Planalto de contabilizar as despesas de saneamento e do Fome Zero no piso da saúde durante a votação do Orçamento de 2004.
Para Guerra, esses problemas poderiam estar sendo evitados se o governo já tivesse regulamentado a emenda constitucional, estabelecendo punições para os governantes que não seguem o que manda o texto. Mas o próprio governo federal não tem interesse em que isso ocorra, porque precisaria também criar uma nova regra de vinculação mais rígida para seus próprios gastos.
“Essa emenda foi uma fraude com o Brasil que o Lula perpetuou e que o Congresso, omisso, até hoje não regulamentou”, critica o presidente da CNM, Paulo Ziulkoski. Segundo ele, os municípios de todo o País já elevaram seus gastos em saúde de 0,67% do PIB para 0,89% desde 2000, mas apenas os prefeitos estão tendo suas contas rejeitadas pelos tribunais de contas. “Os Estados e a União estão descumprindo a Constituição e nada acontece com eles”, protesta Ziulkoski.
O subsecretário de Planejamento e Orçamento do Ministério da Saúde, Valcler Rangel, admite que o problema é a falta de regulamentação. “A emenda veio para garantir uma estabilidade de gastos”, afirma.
Governo deve adiar para 2005 regulamentação
Para Costa, emenda da vinculação é um assunto que exige ‘envolvimento maior’
LÍGIA FORMENTI
BRASÍLIA – O governo federal deve adiar para 2005 a regulamentação da emenda constitucional nº 29, que estipula os critérios de vinculação para os gastos de saúde nos três níveis da federação. A princípio, o texto constitucional – com metas genéricas para a União – deveria ser regulamentado até o final deste ano, mas nem o Palácio do Planalto nem os governadores têm interesse e muito menos pressa em fazer isso agora.
“Este é um assunto que exige um envolvimento maior. Por isso, é melhor abrirmos a discussão e fazer as alterações somente no próximo ano”, afirma o ministro da Saúde, Humberto Costa.
Segundo ele, a proximidade das eleições municipais dificultaria uma discussão mais aprofundada sobre um assunto tão polêmico. Mas na verdade o próprio governo não tem unidade hoje sobre o tema. Enquanto o Ministério da Saúde defende a expansão dos seus gastos para cumprir as promessas de campanha do PT, a equipe econômica tenta conter essas pressões e cogita, internamente, até mesmo de suprimir qualquer vinculação orçamentária. Enquanto isso não se resolve, o governo prefere manter inalterada a atual regra de vinculação com o PIB, que é mais flexível do que a imposta a Estados e municípios.
Na prática, com a vinculação ao PIB, a União tem gasto menos de 9% das suas receitas com a área da saúde, enquanto as prefeituras devem chegar a 15% até o final deste ano, e os Estados, a 12%. No Congresso, existe um projeto de lei originalmente apresentado por um petista, o deputado Roberto Gouveia (SP), que tenta fixar os gastos da União em 11% de suas receitas, mas a bancada governista conseguiu congelar a discussão na Comissão de Seguridade Social da Câmara dos Deputados.
“Precisamos ver se a opção (vinculação com a receita e não com o PIB) representaria um crescimento para os recursos da saúde. E ver, também, se isso é possível dentro do próprio orçamento do governo. É um assunto que temos de discutir com calma”, disse o ministro. (Colaborou Sérgio Gobetti)
Quem investir mais pode ser premiado
Ministro quer complementar repasses do SUS para procedimentos complexos
BRASÍLIA – Sem ter como punir os governadores que não estão cumprindo a emenda que vincula as receitas dos Estados aos gastos da saúde, o ministro Humberto Costa quer premiar aqueles que estão fazendo o dever de casa. A idéia é complementar os repasses do SUS para procedimentos de média e alta complexidade nos Estados que estiverem investindo mais do que 12% de sua arrecadação na área de saúde.
Atualmente, apenas quatro governos estaduais já estão nessa situação:
Amazonas, que investe 25%, e Acre, Amapá e Rio Grande do Norte, que aplicam 13%. Outros três estão gastando menos do que os 12%, mas dentro da margem e do prazo para se enquadrarem.
De acordo com os técnicos que trabalham nessa proposta, o valor do prêmio deverá variar de acordo com as características de cada Estado. E feito de forma que não sejam incorporados ao teto estadual de repasse.
Padrão – Apesar dessa sinalização, o ministro deixa claro que vai defender na regulamentação a inclusão de sanções para gestores que não cumprirem o piso para gastos com a saúde.
“Precisamos de um padrão legal para que Estados sigam a emenda. Para isso, temos de definir claramente o que são ações e serviços de saúde e estipular sanções para quem não cumprir as determinações”, declarou Costa.
O diretor do departamento de Atenção Especializada do ministério, Arthur Chioro, afirma que há formas já clássicas para burlar os investimentos e custeios com saúde. Entre eles, incluir, por exemplo, gastos de planos de saúde de servidores públicos ou em saneamento como se fossem gastos de saúde. Uma discussão semelhante a que foi registrada ano passado, mas pelo próprio governo federal, quando houve a tentativa de se considerar como gasto de saúde o financiamento de alguns programas de transferência de renda.