A Agência Nacional de Vigilância Sanitária é um dos mais importantes órgãos do governo, porque lhe cabe fiscalizar o bom desempenho das atividades relacionadas à saúde. Não obstante seus esforços, o sistema continua precário. Hospitais fecham suas portas, por falta de recursos. Temos, todos os dias, notícias de problemas no setor. Isso reclama a competência técnica e o esforço desdobrado dos fiscais e técnicos da Anvisa.
Mas, ao que parece, esse importante órgão público tem outro tipo de preocupações. Agora, por exemplo, decidiu proibir cartazes de medicamentos no interior das farmácias. O argumento é o de que a existência de pequenos cartazes – a que chamamos, no jargão publicitário, de below-the-line – pode incentivar a automedicação. Ora, a automedicação faz parte de nossa cultura, e o que a estimula não são os anúncios, maiores ou menores, in-doors ou out-doors.
O que a explica, e mesmo, em certo sentido, a recomenda, é o difícil acesso a médicos qualificados. Como se sabe, o que se anuncia, no interior das farmácias, são aqueles medicamentos de baixo custo e uso disseminado. Busca-se, com o anúncio, a preferência do comprador por uma ou outra marca, de produtos de fórmula conhecida e livre comercialização, como é o caso dos analgésicos, dos xaropes, dos fortificantes. A tais medicamentos se acrescentam hoje drogas recentes, de apelo irresistível, uso disseminado e difícil controle destinadas – que se perdoe a expressão usual – a corrigir as assim chamadas disfunções eréteis.
Viveríamos em sociedade ideal se, a qualquer sinal de resfriado, pudéssemos consultar imediatamente um médico de grande qualificação científica, capaz de nos dizer se devemos usar o analgésico X ou o analgésico Y; e se tivéssemos, sempre a nosso lado, outro médico que, ao menor sinal de interesse por uma senhora, nos fizesse acurada avaliação clínica, permitindo-nos ou não o uso da droga e a aventura da conquista. Ou, mais ainda, que estivesse de plantão noturno, nos aposentos matrimoniais, com seus aparelhos de medição e as drágeas de apoio e socorro.
Os costumes estabelecem as leis, e as leis não fazem os costumes. A decisão da Anvisa me lembra – sempre recorro a esse exemplo – a proibição da censura da ditadura a discretíssimo anúncio que a minha agência produziu, e visava a incentivar o uso de preservativos masculinos, único recurso que a OMS de então via para combater um mal que, não se sabia ainda, já era a Aids. Na época, e por uma lei de 1946 de autoria de um deputado que era padre, considerava-se crime anunciar todo e qualquer método anticoncepcional, e a camisinha se incluía entre eles. E nem chegávamos a usar o vocábulo camisinha tão vulgarizado hoje, e vulgarizado por necessária iniciativa do próprio governo. De qualquer maneira, os censores proibiram a veiculação do anúncio.
A medida preocupa mais do que sua improvável eficácia. Os que se automedicam continuarão a automedicar-se, provavelmente com a ajuda, tradicional e permitida por lei, dos próprios farmacêuticos. Alguns anunciantes que lançam no mercado novos produtos com efeitos idênticos aos dos tradicionais sofrerão o prejuízo, porque as marcas mais antigas manterão a preferência dos consumidores. Para as agências de propaganda, o prejuízo não é significativo: a criação e produção desses displays representam fração desprezível da receita das agências. O mais grave é que a essa decisão da Anvisa se reúnem outras, recentes, contra a liberdade de expressão.
A liberdade de produzir anúncios e de os veicular é tão antiga quanto a liberdade de imprensa. Os primeiros jornais impressos surgiram em seguida ao aparecimento dos primeiros cartazes de propaganda, antes mesmo de Gutemberg usar os tipos móveis para imprimir a sua Bíblia. Eram impressos em xilogravura, para anunciar espetáculos de teatro e, em seguida, difundir editais e proclamações do governo. Com o aparecimento dos tipos móveis e a impressão de jornais periódicos – a partir de 1605, nos Países Baixos – os anúncios passaram a ser suporte importante da liberdade de imprensa. Na França, o primeiro grande editor de jornal do século XVII ( a “Gazette”), Theophraste Renaudot, foi também o criador da primeira agência de publicidade da História, com seu Bureau d’adresses.
Sendo, como foi, aliada do jornalismo impresso, a propaganda – esse velho motor da sociedade política – é um dos mais importantes instrumentos da liberdade e dos grandes avanços políticos e sociais dos tempos modernos. “Enfim – conforme resume Henri-Jean Martin em seu grande estudo, Histoire et Pouvoirs de l’ecrit – as baladas políticas encontram novo impacto, e as eleições suscitam, a partir de 1764, verdadeiro dilúvio de volantes, de cartazetes e de cartazes. Ou seja, uma explosão que corresponde à instalação de numerosas impressoras em todo o reino (de França), e que favorece a liberdade de expressão e, enfim, o espírito democrático.” E vamos nos lembrar que a primeira impressora só chegou ao Brasil em 1808, porque a Corte não se interessava que a colônia se informasse.
Ao oferecer aos jornais e aos outros meios de comunicação de massa recursos de fontes plurais e independentes, a propaganda se torna indispensável ao processo político republicano. Nós sabemos como as coisas começam: hoje, usa-se o pretexto da automedicação para impedir os anúncios no interior das farmácias. Amanhã, a proibição passará a vigorar também para os anúncios em jornais, revistas, rádios e televisão. Depois, serão proibidos outros produtos. Para alguns tecnocratas, o ideal seria que todos os veículos tivessem um só anunciante que os controlasse: o governo.
ROBERTO DUAILIBI é publicitário.