Aníbal Faúndes, médico obstetra e professor da Unicamp, defende o fim da condenação pela retirada de feto
O médico Aníbal Faúndes é um dos homens que tentam derrubar a idéia de que a questão do aborto “é um dilema entre bandeiras dos prós e dos contras”, afirma ele.
O chileno, radicado no Brasil desde 1976, é especialista em obstetrícia, professor titular aposentado da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e coordenador do Comitê de Direitos Sexuais e Reprodutivos da Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia (Figo).
Em sua sala, no prédio do Cemicamp (Centro de Pesquisas Materno-Infantis de Campinas), Faúndes defendeu em entrevista à Folha a necessidade de descriminalização do aborto no país, associada a políticas mais eficazes de métodos contraceptivos e de controle familiar. Para isso, atacou a lei vigente no país, pediu mais clareza nos debates sobre o tema e lançou: “Não tenho dúvida de que o zigoto [primeira célula da fertilização] não tem o mesmo direito da mulher”.
Folha – Qual o tabu atual em relação à liberação do aborto?
Aníbal Faúndes – O dilema de ser a favor ou contra é falso. Porque a maior parte das pessoas, senão todos, é contra o aborto. Nem a mulher que faz o aborto gosta dele. O que acontece é que alguns acham que a solução é condenar a mulher. Mas isso não resolve.
Folha – Então, o que deve ser o centro da discussão?
Faúndes – A discussão é: vale a pena condenar a mulher pelo aborto? É injusto. Porque se condena apenas a mulher, não o homem, que muitas vezes, abandonando a mulher, a obrigou a ter que interromper a gravidez. Porque quem paga a conseqüência é só a mulher pobre, já que a mulher rica tem um aborto seguro, em clínicas como a dos países desenvolvidos. Além disso, as complicações do aborto são muito mais caras do que o aborto seguro feito no hospital. Então vamos ver quais são as experiências válidas, que conseguiram reduzir os abortos, e façamos isso.
Folha – Quais são essas experiências a serem seguidas?
Faúndes – Educação sexual nas escolas, promoção de igualdade de poder entre gêneros, plena informação e acesso aos métodos anticoncepcionais e proteção da mulher que queira ter o filho. Hoje em dia, a empregada doméstica que engravida, mesmo com uma patroa muito contrária ao aborto, é mandada embora. Escolas católicas não acolhem meninas grávidas porque é um mal exemplo. Que alternativa tem a menina para continuar estudando? Abortar.
– Folha – A sociedade então é responsável pelo aborto entre as mais carentes?
Faúdes – Eu não diria só entre as mulheres carentes. Muitas mulheres da classe média fazem o aborto porque a sociedade não pode saber que ela tem vida sexual: isso é contra as normas desses grupos sociais. Então, sendo contra a norma, devemos ocultar. Há ainda a mulher que já tem três filhos, é casada, mas tem de trabalhar para poder manter a família. E engravida. Ela tem que ficar com o bebê ou manter o emprego.
Folha – As circunstâncias sociais são mais determinantes que as classes sociais no aborto?
Faúndes – Há um capítulo no livro que lancei que se chama “Paradoxo”. O paradoxo é aquela pessoa que se declara contra o aborto, mas se opõe a todas as medidas que o reduzem. São contra o DIU, contra a educação sexual nas escolas.
Folha – Essa “pessoa” pode ser a Igreja Católica?
Faúndes – São algumas pessoas dentro da igreja. Porque o padre na paróquia tem, muitas vezes, uma conduta muito diferente das tomadas pelo Vaticano. O Vaticano tem duas condições, segundo as leis atuais da igreja, em que a excomunhão é automática. Uma é o atentado contra o corpo do papa. A outra é o aborto. Isso é algo que os sacerdotes sabem, mas ninguém cumpre.
Folha – Diante da necessidade de melhorar os métodos contraceptivos no país, não seria errado descriminalizar o aborto hoje?
Faúndes – Supor que, pelo fato de a lei não condenar, a mulher vá preferir fazer o aborto para evitar a gravidez é pensar muito mal da mulher. Ela não gosta de abortar.
Folha – Afinal, o que pode mudar com a descriminalização?
Faúndes – A mulher que provoca um aborto sabe dos riscos. Ela faz porque não tem alternativa. Nas classes altas, a situação seria quase a mesma, porque ela já faz um aborto seguro. O que muda é que, ao invés de fazer com um médico que não conhecia, ela pode passar a fazer com seu médico. Já a mulher pobre, sobretudo adolescente, poderá fazer um aborto em vez de ter um bebê não desejado.
Folha – É preferível um aborto a um filho não desejado?
Faúndes – Acho que cada indivíduo deveria ter autonomia para tomar sua decisão.
Folha – Independentemente das condições de cada indivíduo?
Faúndes – Todos temos direitos de tomar posições sobre nossa conduta, com limitações que a sociedade tem de colocar. O direito de cada um termina quando começa a infringir o direito do outro. E, na questão do aborto, estão o direito da mulher sobre o seu corpo e os direitos do embrião. Esse é um conflito que a sociedade tem que regular. Mas não tenho dúvida de que o zigoto, uma célula, não tem o mesmo direito da mulher. Em que momento eles começam a ter direitos semelhantes? Ninguém sabe. O que se propõe é uma similaridade entre a morte cerebral marcando o fim da vida. Podemos imaginar então que o início da vida é marcado pela atividade cerebral. E, definitivamente, não há relação entre neurônios até 12 semanas de gravidez.
Folha – Quem deve determinar os limites para esse dilema?
Faúndes – É uma discussão que tem que haver na sociedade, e esse é um momento bom, em que o governo está propondo o debate.
Médico é autor de livro sobre aborto e atuou na Unicamp
DA REDAÇÃO
O médico Aníbal Faúndes foi centro de uma polêmica em 1994 ao declarar à Folha que a Unicamp fazia abortos. Foi investigado, mas não punido. Formado em medicina pela Universidade do Chile, em 1955, virou professor titular da mesma instituição em 1970. Saiu do Chile após o golpe militar, em 1973, passando pela República Dominicana.
Sua ficha de serviços prestados à saúde pública brasileira é extensa. Foi contratado como professor da Unicamp, em 1976, e presidente do Comitê de Recursos para a Pesquisa do Programa de Reprodução Humana (Chair) da Organização Mundial da Saúde. Com o médico José Barzelatto, acaba de lançar o livro “O Drama do Aborto: em Busca de um Consenso” (Komedi). (RB)
“É preciso colocar limites”, afirma médico
Obstetra afirma que maioria dos hospitais não interrompe a gravidez em casos de estupro, mesmo com permissão legal
DA REDAÇÃO
Leia abaixo o restante a entrevista com Aníbal Faúndes:
Folha – O governo anunciou a criação de um grupo para revisar a lei de punição para abortos no país, mas diz não ter posição a priori. O governo deveria se posicionar a respeito?
Faúndes – A posição do governo é: não pode continuar como está. A lei é clara, há algumas permissões, e devemos cumpri-las.
Folha – Ou seja, mesmo com a lei permitindo abortos em casos de estupro, os hospitais não os fazem?
Faúndes – A maior parte dos hospitais não realiza.
Folha – Por quê?
Faúndes – Por falta de normas de como fazer, de conhecimento de quais são as limitações da lei.
Folha – Há um temor entre os médicos em relação à lei?
Faúndes – Há um enorme erro de interpretação ao acreditar que, para fazer um aborto legal, é preciso uma autorização judicial. Nada que é legal necessita de autorização. Acabamos de fazer uma pesquisa que mostra que 65% dos médicos acreditam que, para fazer um aborto legal, é preciso um alvará judicial.
Folha – O aborto deve ser descriminalizado somente em casos de feto anencefálicos ou em todos as situações?
Faúndes – Não faz sentido criminalizar o aborto, mas colocar limites é necessário.
Folha – Há muita hipocrisia no país quando se discute o aborto?
Faúndes – Fizemos um estudo, em que perguntamos aos médicos se alguma vez tinham ajudado uma mulher que tinha uma gravidez indesejada. A atitude inicial do médico sempre foi tentar convencê-la a continuar a gravidez. Mas, se a mulher insistiu, quem ajudou encaminhou a um médico que faz aborto ou ensinou a usar o Cytotec [remédio que promove abortos] ou de fato fez o aborto. Quem não ajudou disse para procurar outro médico. 40% ajudaram a cliente que veio pedir ajuda. Com um parente, o índice de quem ajudou subiu para 48%. Com a própria médica ou a companheira do médico, o índice foi de quase 80%. Para mim, isso mostra que o aborto se justifica cada vez mais quanto mais próximo se está do problema.
Folha – Mesmo sendo ilegal?
Faúndes – Mas há 1 milhão de abortos no Brasil por ano. Quantas pessoas estão em casa e quantas foram para a cadeia? Ninguém, é uma lei que não se aplica. Se fosse aplicada, não teria cadeias no Brasil para todos.
Folha – O sr. tem notícias de pessoas condenadas por aborto, seja paciente ou médico?
Faúndes – Há dez anos fui processado porque a Folha publicou que o Hospital da Unicamp fazia abortos ilegais. Eu dei uma entrevista em que fui consultado sobre um caso de uma mulher que tinha sido condenada por ter provocado um aborto. Ela tinha sido estuprada por seu ex-marido e tinha ido a uma aborteira em Jundiaí [interior de SP], que disse ter feito o aborto com dois meses. Ela sangrou um pouco, mas a gravidez continuou. Quando tinha quatro, cinco meses, notou movimentos fetais e foi novamente à aborteira, que tentou fazer o aborto, e acabou perfurando o útero e a bexiga. Quase matou a mulher. Ela foi parar na emergência, e o médico, indignado, denunciou à polícia a aborteira. A polícia não encontrou nada, e quem foi condenada foi a mulher. O que eu disse é que, se ela tivesse vindo à Unicamp, nós teríamos feito o aborto. E de fato quem fazia os abortos eram o chefe da ginecologia e o chefe da obstetrícia, que era eu. O resto [dos médicos] não queria.
Folha – Faria em todos os casos?
Faúndes – Não, em casos legais. Em casos de estupro.
Folha – A Unicamp ainda faz esses abortos?
Faúndes – Claro, com alvará.
Folha – Quais problemas o sr. teve por ter feito aquelas declarações?
Faúndes – Até aquele momento poucos juízes davam alvará judicial e poucos hospitais estabeleciam mecanismos para se conseguir o alvará. E, em pouco tempo, isso cresceu exponencialmente.
Folha – Esse tipo de aborto ainda é feito sem autorização judicial?
Faúndes – Aqui na Unicamp não. A grande diferença entre aborto e parto é que o aborto é o nascimento de um feto que não tem viabilidade, que não pode sobreviver. Já se chama parto prematuro quando o feto pode sobreviver fora do ventre da mãe. No caso do feto anencéfalo essa possibilidade não existe. Porque ele não pode viver fora do ventre em nenhuma situação. Chama-se indução de parto quando se faz com 30 semanas, 38 semanas. Não é aborto, é interrupção de gravidez.
Folha – E assim não é proibido?
Faúndes – Não, porque muitas vezes a gravidez pode colocar em risco a vida da mulher.
Folha – Mas então por que defender a liberação do aborto para feto anencéfalo?
Faúndes – Porque você precisa fazer o aborto. Por que esperar que a mulher corra risco?
Folha – Que tipo de ação foi movida contra o sr.?
Faúndes – Houve investigação no Ministério Público.
Folha – O que aconteceu?
Faúndes – Venceu o prazo, eu nem fui processado. (RICARDO BRANDT)