Quando não há mais esperança de cura, médicos holandeses põem fim à vida de recém-nascidos com doenças graves
Roberto Wüsthof, de Hamburgo
Anna era doente demais para a vida. Nasceu com síndrome de Down e uma malformação do cérebro e da coluna vertebral. No lugar do palato havia uma fenda enorme. “Nem analgésicos potentes conseguiam atenuar a dor de nossa filha”, relata a mãe. Por isso, os pais tomaram uma das decisões mais difíceis de sua vida, quando a menina tinha apenas 4 semanas de idade. Eles pediram que sua filha fosse morta com a ajuda de medicamentos. Em seu país, a Holanda, a morte induzida por médicos – chamada de eutanásia – deixou de ser crime há quatro anos. No entanto, a lei só se aplica a pacientes terminais adultos e exclui crianças menores de 12 anos, consideradas incapazes de expressar sua vontade. Mas agora tudo indica que a legislação está prestes a permitir também a interrupção da vida de recém-nascidos sem esperança de cura para seus padecimentos.
“Anna teria sofrido cerca de vinte intervenções cirúrgicas apenas no primeiro ano de vida”, diz Eduard Verhagen, diretor do departamento de pediatria do Hospital Universitário Groningen, na Holanda. Vários especialistas avaliaram o estado do bebê e chegaram à conclusão de que as operações não mudariam o péssimo prognóstico. Os pais não suportavam a idéia de esperar durante semanas ou mesmo meses até a morte natural chegar. Eduard Verhagen, pai de três filhos, também achou desumano o prolongamento do sofrimento. Foi o próprio pediatra que, então, aplicou em Anna uma dose elevada de morfina e de um calmante, enquanto a mãe segurava a menina no colo, rodeada pelo pai, pelos avós, por uma enfermeira e por um sacerdote. Demorou apenas poucos minutos até que o coração do bebê deixasse de bater.
Pela legislação holandesa, Eduard Verhagen poderia ser processado por assassinato, porque a eutanásia só é livre de punição quando se trata de pessoas capazes de optar por ela conscientemente, o que não é o caso de um recém-nascido. No entanto, o diretor da pediatria, que também estudou direito, negociou há dois anos com a promotoria do estado um acordo prevendo a aplicação de um protocolo com critérios rígidos para a eutanásia em outras situações que não as previstas em lei. Nas próximas semanas a eutanásia de recém-nascidos será debatida pelo Parlamento holandês. A Holanda poderá se tornar o primeiro país do mundo a permitir a morte ativa de pessoas sem o consentimento expresso delas.
“A nossa conduta é honesta e transparente, porque no mundo inteiro médicos reagem como nós e abreviam a vida de bebês sem prognóstico, só que ninguém assume isso publicamente”, diz Verhagen. Numa sondagem anônima entre neonatologistas holandeses, mais de dois terços concordavam com a eutanásia ativa no caso de crianças sem esperanças de cura. Por isso, o chamado Protocolo de Groningen tem alta aprovação entre os pediatras. Todos os oito hospitais universitários holandeses aderiram a ele. O protocolo prevê cinco critérios para a eutanásia em crianças. Primeiro, o sofrimento é muito grave. Segundo, a sobrevivência é impossível por muito tempo. Terceiro, a chance de cura ou melhora da doença por meio de medicamentos ou cirurgias é inexistente. Quarto, os pais concordam com o diagnóstico e um médico independente reavalia o caso e chega à mesma conclusão. Por último, depois da morte da criança os pais recebem acompanhamento psicológico. Felizmente, as situações em que se aplica a eutanásia por esses critérios são raríssimas, sendo que elas se apresentam muito mais como um dilema ético do que como um enigma médico. O pediatra Verhagen estima que de dez a quinze crianças na Holanda se veriam nessa situação a cada ano. No mundo seriam cerca de 600 recém-nascidos vindo ao mundo em estado tão desesperador.
A idéia de colocar de pé um protocolo da eutanásia neonatal acompanha Eduard Verhagen há anos, desde a ocasião em que ele não teve coragem de pôr fim ao sofrimento de um bebê cujos pais imploravam para que ele abreviasse a sua tenra e desumana existência. A criança nascera com uma forma severa de epidermólise congênita – uma malformação da pele, sem cura. Ao ser tocada, a pele se esfolava até que o corpo inteiro estivesse em carne viva. O bebê tomava morfina constantemente. Formavam-se cicatrizes tão grandes que em questão de semanas as articulações do bebê foram imobilizadas. Quase todos os pacientes que sobrevivem a esse martírio desenvolvem mais cedo ou mais tarde um câncer agressivo de pele. A criança que emocionou Verhagen morreu aos 6 meses, em casa, de pneumonia.
O pequeno paciente sofreu tempo demais ou a experiência das dores faz parte daquela zona miserável da condição humana? Pais e médicos respondem a essa pergunta de acordo com a sua formação cultural e religiosa. Uma pesquisa européia mostra que metade dos pediatras italianos tentaria reanimar um prematuro até em casos extremos, mesmo que houvesse riscos enormes de ele se tornar um deficiente mental grave. Na Suíça ou na Holanda, menos de 5% dos médicos declararam fazer a mesma coisa que seus colegas italianos.
Na Alemanha, um caso comoveu o país. O menino Victor teve parte do cérebro e dos rins destruída por um problema no parto. Os pais legítimos abandonaram a criança aos 6 meses, no Hospital Universitário de Hamburgo, na Alemanha. O menino sobrevivia apenas graças à diálise peritoneal, que limpava o seu sangue das toxinas que o rim não excretava. Ficou preso à cama a vida toda, porque não andava e também não falava. Teve alta do hospital, pela primeira vez, aos 3 anos de idade, quando pais adotivos o levaram, continuando a diálise peritoneal em casa. Desde então, a família adotiva de Victor nunca mais tirou férias, dedicando-se integralmente ao menino. Os pais adotivos se alimentavam emocionalmente dos sorrisos esporádicos do garoto. Esse movimento de lábios, que os médicos não sabem dizer se é apenas um esgar involuntário, deu aos novos pais de Victor a certeza de que, mesmo em condições terríveis, ele estava saboreando cada minuto da vida e do amor que lhe era dedicado. Victor recebeu dois transplantes de rim. Recentemente, ele morreu, aos 8 anos, sem nunca ter engatinhado, andado, ido à escola ou falado uma só palavra. Os médicos discutiram a eutanásia passiva em vários momentos da vida de Victor. No entanto, ninguém ousou executá-la.