Quando na década de 70 entrei em contato com a psiquiatria o fiz pelo viés da responsabilidade com a assistência e a implantação do modelo psicodinâmico no cuidar de pacientes e da própria equipe. Foram dias de ebulição e chegamos a ter três estabelecimentos psiquiátricos funcionando em Alagoas com esse avançado sistema de cuidar, compartilhar a assistência e devolver a sociedade pessoa em condições de, no mínimo, poder conviver em família.
Refletíamos as mudanças no sistema ambulatorial e pensávamos o sistema de reabilitação como instrumento seguro para estimular o convívio e, se possível, devolver cidadãos produtivos ao trabalho e a sociedade.
Criticávamos o sistema e nos uníamos as vozes que apontavam a ineficiência do hospital como o guarda-chuva de toda a assistência.
Em
Ao tomar contato com o PL do Dep. Paulo Delgado, fiquei estarrecido. O que alardeavam de transformação era nada mais nada menos que um libelo contra os médicos-psiquiatras e os hospitais. Vejam abaixo parte do texto do PL e suas justificativas:
Art.1º – Fica proibida em todo o território nacional a construção de novos hospitais psiquiátricos públicos e contratação ou financiamento, pelo setor governamental, de novos leitos psiquiátricos;
Art.2º – § 3º – Conselho da Reforma Psiquiátrica… com trabalhadores de saúde mental, os usuários, familiares, o poder público, a ordem dos advogados e a comunidade científica.
Art.3º – Internação compulsória… o médico que procedeu comunicar em 24h ao defensor público…
§ 2º – Compete ao Defensor Público ouvir, o paciente, o médico e equipe técnica de serviço, familiares… decidir em 24h sobre a legalidade da internação…
Justificativa
…A inexistência de limites legais para o poder de seqüestro do dispositivo psiquiátrico é essencial à sobrevivência dos manicômios enquanto estrutura de coerção…
Nos Estados Unidos a instância judiciária intervém sistematicamente inibindo o poder de seqüestro dos psiquiatras. No Brasil, da cidadania menos que regulada, a maioria das 600.000 internações são anônimas, silenciosas, noturnas, violentas, na calada silenciosa dos pacientes.
O pior, contudo, é que havia sim, Leis que preconizavam o modelo assistencial descentralizado, como abaixo verão no texto da Lei 2312/54, desconhecidas ou por má fé esquecidas:
Art. 22 – O tratamento, o amparo e a proteção ao doente nervoso ou mental serão dados em hospitais, em instituições para-hospitalares, ou no meio social, estendendo à assistência psiquiátrica a família do psicopata.
§ 1º – As casas de detenção e as penitenciárias terão anexos psiquiátricos, cujos objetivos serão fixados na regulamentação da presente Lei;
§ 2º – O Governo criará ou estimulará a criação de instituições de amparo social à família do psicopata indigente e centros de recuperação profissional para alcoolistas e outros toxicômanos
Decreto Regulador nº. 49974-A/61
Código Nacional da Saúde
Psico-higiene e Assistência Psiquiátrica
Art. 75 – A política sanitária nacional com referência à saúde mental, é orientada pelo Ministério da Saúde, no sentido da prevenção da doença e da redução, ao mínimo possível dos internamentos em estabelecimentos nosocomiais.
Programas de Psico-higiene para prevenção; elucidação diagnóstica para internação; punição do estabelecimento médico que descumprisse a lei; proibição de práticas psicológicas a quem não fosse habilitado; obrigação ao MS fazer investigações epidemiológicas sobre incidência e prevalência de doenças mentais (dos artigos
Essa Lei só foi revogada em 1990 com a aprovação da Lei 8080 que cria o SUS.
Como se pode constatar o Brasil dispunha de um instrumento legal que previa a construção de uma rede assistencial que privilegiasse a assistência extra ou para-hospitalar.
Acontece que o PL Delgado caiu. Em seu lugar uma Lei que retoma os conceitos acima, de número 10216/01. Vejam parte dela:
Art. 4
A internação, só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes.
O tratamento em regime de internação será estruturado… assistência integral… incluindo serviços médicos, de assistência social, psicológicos, ocupacionais, de lazer, e outros.
Art. 6
A internação psiquiátrica somente será realizada mediante laudo médico circunstanciado que caracterize os seus motivos.
Art. 7
A pessoa que solicita voluntariamente… deve assinar…uma declaração…
O término… dar-se-á por solicitação escrita do paciente ou por determinação do médico assistente
O que aconteceu depois. A Lei tem sido constantemente violentada porquanto dispositivos anti-médico, como equipe revisora de internação psiquiátrica, multiprofissional que caiu no Plenário do Congresso Nacional foi ressuscitada através de Portaria pelo MS. Flagrante ilegalidade.
A redução de leitos hospitalares foi estabelecida em metas contra o bom senso da substituição mediante estatística e implantação ordenada e qualificada dos serviços alternativos. Satanizaram o hospital como centro de maus tratos e torturas e, o ambulatório desapareceu dos programas de Saúde Pública. Capilarizam os CAPs, mas, desvirtuam sua função, o transformando num híbrido que ninguém sabe se é equipamento da atenção primária secundária ou terciária. O médico está em todas as Portarias, contudo o modelo para sua funcionalidade negligencia e banaliza a idéia de Plantões sem médico e assistência as crises à distância.
Por toda essa estratégia, denuncio desde o início tais dilemas. O PL Delgado foi recusado pela sociedade, os derrotados ficaram no poder, ressuscitando os dispositivos preconceituosos contra os médicos e os estabelecimentos de assistência médica, em Portarias, estabelecendo uma condição antijurídica e antiética que só tem levado ao conflito.
Emmanuel Fortes S. Cavalcanti é Presidente do Conselho Regional de Medicina de Alagoas