Por Eduardo Costa, Médico, sanitarista da Fiocruz
O filme Invasões Bárbaras está a provocar debates sobre as gerações das elites intelectuais do mundo ocidental do pós-guerra mundial. Como matéria de reflexão, nos presenteia com estereótipos belamente humanizados e caracterizados. Declara que as mudanças são na camada cultural mais externa do cérebro, que a alma é quase a mesma, que os fios afetivos entre pais e filhos permanecem. E que as invasões bárbaras (desde a Idade Média) fazem parte de uma contracultura, destinada apenas a arranhar o mundo da tecnologia da informação e da comunicação, de futuro garantido pela racionalidade e a corrupção.
Não bastasse esse formidável banquete para aproximar pais e filhos divididos pelas paixões da juventude, Invasões Bárbaras já é instrumento da luta comercial que se trava no seio do setor brasileiro de saúde. Nada de novo, a saúde e suas instituições são moldadas pelos interesses econômicos que as integram e circundam.
Como Rémy, creio que pelo pouco, a alto custo, que pode oferecer a medicina privada, seus interesses precisam desmoralizar a medicina pública. Todos os que viram o filme entenderam os olhos dos que vêem os corredores de hospitais canadenses de Quebec, parecidos com os que em outros filmes vêem emergências de hospitais americanos de Nova York superlotados, inclusive fazendo rir com as trapalhadas. Não faltam os negros e os indianos para colorir com estupidez e exotismo o abandono dos velhos que já se abandonaram.
Lamentavelmente esse debate crítico não penetra a mente do mundo dos negócios da saúde, que vê no filme a prova de que mesmo no Canadá os hospitais públicos são terríveis. Não é verdade. Freqüentei, acompanhando pessoa da minha família, um hospital de Montreal, por cujos serviços paguei como estrangeiro e onde a meu lado, de maneira comovente, nos consultórios e enfermarias, havia canadenses tratados por médicos e enfermeiras de ascendência européia, africana ou asiática, impecáveis na atenção aos pacientes e muito bem treinados, sem baderna como no filme.
Não creio que os serviços de Quebec sejam tão piores do que os de Montreal e vou duvidar de que nesses últimos seis anos possa esse modelar serviço ter decaído tanto, apesar do forte estrago feito no orgulho e na dignidade de todos, inclusive de servidores públicos da saúde, pelos novos valores trazidos com a globalização financeira, ilustrados pela função do filho de Rémy: vender garantia de longo prazo com diminuição de retorno imediato. Uma modalidade de seguro. Quanto à garantia da qualidade, bem, é uma ação de marketing, precisa de investimentos, que não há no setor público.
O debate sobre medicina pública e privada, escamoteado, dá-se, pois, no mesmo contexto do conflito entre gerações, do filme: conteúdo versus embalagem.
Não é demais comentar que o filho de Rémy, com toda sua aparente sofisticação, trabalha num país onde impera a prestação pública de serviços de saúde, onde os planos de saúde privados não chegam a cobrir 5% da população. Essa fortaleza sanitária, ainda não destruída pelas invasões bárbaras do capitalismo financeiro, ainda é o paradigma moderno de um ”Serviço Nacional de Saúde” onde universalização, integralidade, eqüidade, não são retórica, mas sim encaminhadas por uma estrutura capaz de planejar e se contrapor à desordem natural do capitalismo.
De resto, só nos resta lamentar que nosso SUS não tenha se inspirado no Serviço Nacional de Saúde inglês. De fato, não construímos um serviço universal de boa qualidade de atenção primária, corporativizamos a participação comunitária e entregamos os recursos públicos para serviços privados de saúde gerenciados por secretários municipais de saúde sujeitos a forte influência político-partidária.
Como conseqüência, num país de renda concentrada, 25% da população fogem para planos de saúde, e mantemos elevadas taxas de mortalidade materna, infantil, de jovens, desperdício, descaso. Mas isso é outro assunto, que certamente estará sendo debatido na 12a. Conferência Nacional de Saúde Sérgio Arouca (O SUS que temos e o SUS que queremos), que se realiza agora, nesta segunda semana de dezembro, em Brasília, aliás sem que possamos alimentar expectativas de uma reforma estrutural necessária.