A medicina privada há muito deixou de ser um porto seguro para os poucos e afortunados brasileiros capazes de pagar por um plano de saúde ou por um médico particular. Se o atendimento gratuito é, muitas vezes, precário, o pago também deixa a desejar.
Os pacientes reclamam que não recebem a devida atenção de seus médicos — que se limitariam a pedir exames.
Os profissionais se queixam de remuneração baixa e falta de tempo.
Nessa inversão de prioridades, o paciente deixa de ser visto como pessoa e prevaleceriam os interesses dos chamados intermediários financeiros (grupos econômicos, planos de saúde, cooperativas e seguros).
A análise é do médico Luiz Roberto Londres, autor do livro “Sintomas de uma época — quando o ser humano se torna um objeto”, que fez uma palestra na semana passada, na Casa do Saber, sob o tema “Ética e filosofia na prática médica”. Nesta entrevista, o médico, que é diretor da Clínica São Vicente, fala sobre o desgaste da relação entre médico e paciente e sobre a ética (ou a falta dela) no dia-adia da profissão.
MÉDICO E PACIENTE: “Essa relação anda ofuscada por outras coisas, como números, finanças, processos.
Os intermediários financeiros (seguros, planos e cooperativas) estão tendo uma interferência indevida na relação entre médico e paciente e não está se valorizando o fundamental, que é a relação interpessoal. Se formos verificar o valor e o tempo da consulta, veremos que ela é quase virtual, se reduz a pedidos de exames e quase não há conversa.”
DIAGNÓSTICO: “Estudos mostram que uma boa conversa leva a um diagnóstico correto em 90% dos casos, além de estabelecer um vínculo entre o médico e o paciente, que é terapêutico
ENSINO DETURPADO: “Hoje existem escolas de medicina
O
CONSULTAS: “Se o paciente sai de uma consulta com a sensação de não ter sido ouvido, isso é verdadeiro.
Porque o médico tinha que estar preparado para estabelecer uma relação, para ter certeza de que o paciente se sente ouvido e compreendido, não simplesmente para falar sem se preocupar se o outro está entendendo ou não. E, se o paciente não entendeu, ele tem a obrigação de explicar.
Fico perplexo com colegas que não dão atenção a uma dúvida, a um anseio, ao que quer que seja.”
MODELO AMERICANO X MODELO EUROPEU: “Existem dois modelos de prática médica. O dos Estados Unidos, que é o biomédico, que trata a doença.
E o outro que é espanhol, o biopsicosocial.
Eu acredito que não se pode reduzir a medicina à ciência; a dimensão humana à dimensão biológica.”
IMPACTO DAS TECNOLOGIAS: “Um médico que se respeite como tal não pode pedir exames antes de ter formulado uma hipótese de diagnóstico (por meio da conversa). O exame não se chama complementar por acaso. Ele serve para confirmar a sua hipótese, dar números. O uso do exame é ótimo, o abuso é deletério. O exame dá uma visão parcial, não o todo do paciente. Um estudo feito entre 1958 e 1988 revelou que, à exceção do câncer, o acerto diagnóstico piorou nesse período. Isso porque se está substituindo a conversa e o exame físico pela tecnologia.”
NOTÍCIAS RUINS: “O médico precisa saber como dar determinadas notícias.
Sabe aquela história do gato que subiu no telhado? Pois é. É preciso haver um preparo da mente para receber uma notícia ruim sem desespero. Não se pode esconder nada do paciente, mas é preciso saber o momento certo e a melhor maneira de contar. E isso se descobre se há uma boa relação com o paciente, se você está a par da vida dele, do momento pelo qual ele passa.
Uma notícia dada de forma errada pode arrasar uma vida.”
INTERMEDIÁRIOS FINANCEIROS: “Há uma interferência excessiva, eles passaram a ser mais importantes que a própria medicina e isso tem que ser colocado por terra. Mas os hospitais não se posicionam, os médicos não se posicionam, os conselhos de medicina não se posicionam.”
ENTIDADES REPRESENTATIVAS: “O que vemos hoje é que essas entidades (associações, sindicatos, conselhos) estão meio perdidas. Vemos que muitas vezes elas estão representando mais os intermediários financeiros do que as próprias instituições e representados. Hoje, muitas entidades estão em evidente situação de conflito de interesse, misturadas a grupos econômicos, a intermediários financeiros.”
PESQUISAS E INTERESSES DOS LABORATÓRIOS: “O dinheiro está presente
Seria preciso haver também um fortalecimento das instituições médicas para referendar não só a metodologia científica mas também seus aspectos filosóficos e éticos.”
PARTO NORMAL X CESÁREA: “O parto é feito por parteiras na maior parte do mundo. Nascer é um evento biológico, não médico. O médico interfere apenas se houver algum problema.
Termos hoje quase 90% dos partos por cesárea é o fim da picada.
Mas por que isso ocorre? Primeiro, porque o médico não quer perder tempo. E um parto normal pode levar horas. Paralelamente a isso, existe uma cultura que diviniza a tecnologia.
E, claro, há o dinheiro. Quanto mais tempo a paciente fica no hospital, mais material usa, mais dinheiro gasta. E um parto normal pode ser feito
EMOÇÃO E
Atualmente há um discurso corrente em defesa da técnica, que sustenta que a emoção atrapalha, contamina, que você precisa se defender contra ela. Eu não concordo.” (Portal G1)