Nas primeiras horas da manhã, o aposentado Waldir Barbosa Santiago, 67 anos, engole com água o primeiro dos sete comprimidos que tomará ao longo do dia. Na lista de medicamentos que usa, há antibióticos para doenças do pulmão, estômago e coração. No final do mês, ele gasta mais de R$ 400 com remédios. A dona-de-casa Ana Amélia Florença, 65, não fica atrás. Metade do seu salário de aposentada é gasta com medicamentos. Da lista de 10 antibióticos, seis ela compra sem receita médica. Os analgésicos e efervescentes, Ana Amélia escolhe no balcão da farmácia pelos comerciais que assiste na televisão.
De olho nos pacientes que abusam do uso dos remédios, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) está realizando seminários em todas as regiões para alertar a população e as autoridades em saúde sobre os riscos da automedicação e do uso indiscriminado de remédios. Nas apresentações, os técnicos do órgão federal apresentam números assustadores aferidos pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Pelas estatísticas, 75% das prescrições médicas são errôneas, 50% dos medicamentos prescritos são dispensados ou usados inadequadamente, apenas 50% dos pacientes usam remédios adequadamente e 30% das internações por intoxicação ocorridas no Brasil têm como origem o uso incorreto de remédios.
Waldir, o aposentado que toma sete remédios por dia, conta que metade dos antibióticos que usa é para combater problemas causados pelo cigarro. Fumante durante 40 anos, ele apresenta agora uma série do complicações em decorrência do vício. "Parei de fumar há 14 anos, mas até pouco tempo atrás meu catarro ainda era escuro", recorda. O uso contínuo do cigarro também acarretou problemas cardíacos e estomacais para o aposentado. Hoje ele tem uma gastrite crônica e depende de três remédios para o coração. "Se parar de tomar essas pílulas, morro", afirma.
A funcionária pública Fernanda de Nazaré Espinosa, 39 anos, é quem escolhe os remédios quando tem problemas de saúde leves. Na semana passada, teve uma inflamação na gengiva e comprou o antiinflamatório Cataflam, um dos mais vendidos no país. "Sempre uso o mesmo. Aliás, minha mãe já usava quando eu era criança", relata. Quando a filha, de 14 anos, adoece com febre, o medicamento administrado também não é prescrito por médico. "Confio mais na tradição da minha família e compro o mesmo remédio que minha avó comprava", explica.
Perigo
É nessa confiança que mora o perigo. O Cataflam, por exemplo, pode ser um ótimo antiinflamatório. Mas, se usado sem orientação médica, pode acarretar uma série de efeitos adversos, como inchaço e vermelhidão na face, bolhas pelo corpo, erupção cutânea generalizada, respiração ofegante e até parada cardíaca. "Algumas vezes, o remédio deixa de ser a cura para ser a doença", alerta o presidente da Federação Nacional de Médicos (Fenam), o urologista Heder Murari Borba.
Representante nacional todos os sindicatos estaduais de médicos, Maruri explica por que 75% dos medicamentos receitados aos pacientes são prescritos de forma errada. "É um fator cultural. O médico se sente pressionado a receitar. Se um paciente for atendido no consultório e o médico não lhe der uma receita, ele ficará frustrado e exigirá do médico um remédio. Nessa situação, nasce uma nova receita", justifica. Ele revela ainda o que todo mundo já sabe. "A indústria farmacêutica no mundo todo exerce uma pressão muito forte sobre os médicos. Começa nos corredores das universidades e aumenta quando o médico começa atender a pacientes", informa.
A pressão da indústria farmacêutica nos consultórios se dá de forma direta, porém, camuflada. Os grandes laboratórios patrocinam seminários nacionais e até internacionais, dão brindes e presentes caros aos médicos. Em troca, eles se sentem obrigados a receitar o medicamento indicado pela indústria. Alguns laboratórios têm mecanismos de averiguar se determinado médico está receitando ou não o remédio indicado. Essa pressão estende-se até o balcão da farmácia. Murari conta que os laboratórios bonificam os balconistas que "empurram" seus remédios aos clientes. "Essa cadeia é prejudicial à Saúde Pública", adverte.
Murari diz que a cultura de se automedicar e a pressão da indústria são antigas e bastante comuns no país. Não é raro encontrar alguém utilizando o mesmo remédio que o irmão ou vizinho tomou em caso de gastrite, hipertensão, tratamento da obesidade. A socióloga Maria de Fátima Salgueiro, da Universidade de Campinas (Unicamp), atribui a automedicação aos profissionais que estão no balcão da farmácia e, principalmente, ao baixo poder aquisitivo da população brasileira. "Sem condições financeiras para adquirir um plano de saúde ou para procurar um médico particular, o doente parte para o uso de medicamentos indicados por leigos", destaca. "Na minha opinião, pesa mais o fator cultural, já que o fenômeno da automedicação ocorre também nas camadas mais privilegiadas", opina Pedro Rangel, da Associação Médica Brasileira (AMB).
30% das internações por intoxicação ocorridas no Brasil têm como origem o uso incorreto de remédios
15% da população brasileira consome mais de 90% de toda a produção farmacêutica
70% das consultas médicas geram prescrição medicamentosa
75% das prescrições médicas são errôneas
30% das vítimas de intoxicação que se internam em prontos-socorros tomaram remédios sem receita
20 injeções medicamentosas são prescritas a uma criança até os 2 anos de idade
Apenas 50% dos pacientes tomam remédios corretamente
Em 30% dos pacientes, o remédio prescrito não faz mais efeito por conta do uso incorreto feito no passado
Fonte: Anvisa e OMS
Propaganda reformulada
A propaganda de medicamentos na mídia é considerada por especialistas a maior aliada da automedicação. No Brasil, os comerciais invadem o horário nobre da televisão e as páginas das principais publicações periódicas. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) está reformulando a regulamentação para tornar a veiculação das peças publicitárias mais rigorosa.
Nas novas regras, deverá ser proibida a propaganda de medicamento junto à classe médica. Atualmente, os laboratórios enviam panfletos publicitários das apresentações dos remédios. Outra novidade seria proibir a associação do uso de medicamentos ao bem-estar, como ocorre em anúncios de laxantes e analgésicos.
Para o presidente da Federação Nacional de Médicos, Heder Murari Borba, o ideal seria banir qualquer tipo de comercial para reduzir a automedicação no Brasil. Mas ele reconhece que não será fácil banir as propagandas, já que metade das vendas está relacionada diretamente à publicidade. Tanto que 33% do valor dos medicamentos referem-se aos gastos com anúncios publicitários.
O Brasil tem regras para regulamentar a propaganda de medicamentos desde 1976, mas só começou a pô-las em práticas a partir do ano 2000. Devido a esse atraso, a indústria farmacêutica saiu na frente e hoje anuncia quase tudo que quer, do jeito que quer. A análise dos comerciais, por exemplo, é feita pelo governo só depois que eles estão sendo exibidos. Neste ano, a Anvisa já retirou do ar dois comerciais de efervescente e analgésico estrelados pelas atrizes globais Susana Vieira e Malu Mader.
"Não é correto celebridades anunciarem medicamentos na televisão porque passam uma idéia errada para o público, que acaba se automedicando. Isso é um risco", explica a gerente de Fiscalização e Monitoramento da Anvisa, Maria José Delgado.
Nos Estados Unidos, os laboratórios farmacêuticos anunciam à vontade. No entanto, a venda de remédios é rigorosa. As caixas não ficam à mostra em prateleiras, como ocorre no Brasil. E ainda necessário preencher um formulário com o número da carteira de identidade para comprar até mesmo um simples remédio para febre.