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Mentira que destrói

A americana Julie Gregory, de 35 anos, passou a infância e a adolescência peregrinando por consultórios médicos e hospitais. Tinha enxaquecas, crises de vômito e dores de garganta crônicas. Aos 12 anos, com suspeita de sofrer de uma disfunção cardíaca, ela iniciou uma maratona de internações que culminou numa pequena cirurgia para investigar a causa do problema. Diagnóstico: não havia nada de errado com seu coração. A história de Julie poderia ser igual à de tantas outras crianças de saúde frágil, não fosse por um detalhe – suas doenças foram inventadas e provocadas pela mãe. Para fabricar os sintomas que atormentavam a filha, ela dava-lhe doces envenenados com pesticida, ministrava-lhe remédios fortes sem necessidade e mentia aos médicos sobre as “crises de taquicardia” da menina. A mãe da americana era vítima de uma rara doença do comportamento conhecida como síndrome de Münchausen. Esse distúrbio psicológico é devastador. Ele se revela em duas versões. Na primeira, a pessoa simula doenças em si própria. Em sua forma mais perversa, tenta produzir doenças nos filhos. Em ambos os casos, embora de maneira não consciente, o doente busca fazer-se de vítima para receber a atenção dos médicos, da família e dos amigos. Em 1957 o psiquiatra Richard Asher batizou a síndrome em uma referência a Karl Friederich Hieronymus, o lendário barão Von Münchausen, nascido na Alemanha em 1720 e cuja vida de aventuras deu origem a diversas obras de desvairada ficção.

A síndrome de Münchausen foi reconhecida pela psiquiatria apenas em 1977. Hoje, a literatura médica registra cerca de 500 artigos sobre ela. Um dos primeiros, e mais contundentes, foi feito por cinco pesquisadores do hospital Children’s Healthcare, ligado à Universidade Emory, de Atlanta. Diante das doenças inexplicáveis que acometiam 23 crianças aparentemente normais, eles decidiram investigar a vida familiar de cada uma. Descobriram casos de mães que injetavam nos filhos seus próprios fluidos corporais – urina e sangue – e outras que sufocavam as crianças para que seu estado de saúde piorasse. Julie Gregory foi a primeira vítima a tornar públicos os maus-tratos que recebeu. Psiquiatra formada pela Universidade de Sheffield, na Inglaterra, ela descobriu que fora vítima da doença de sua mãe durante uma aula de psicologia sobre o tema. Decidiu contar tudo o que passou num livro, Eu Não Sou Doente, que permaneceu entre os mais vendidos na Inglaterra por oito meses e chega às livrarias brasileiras nesta semana.

Julie percorreu todos os hospitais onde foi internada e coletou mais de 200 páginas de relatórios e exames médicos. A maioria deles atestava que ela era normal. “Quando os médicos não achavam nada de errado, minha mãe ficava furiosa e lá íamos nós a outro hospital”, disse Julie a VEJA. “Ela estudava livros médicos e decorava todos os sintomas das doenças que queria me impor. Alguns eram reais, mas a forma como eles haviam aparecido era sempre omitida.”

Não há estatísticas sobre a incidência da síndrome de Münchausen no Brasil. Nos Estados Unidos, são identificados 1.200 casos por ano. Os especialistas afirmam que os adultos portadores da síndrome têm consciência de que provocam doenças em seus filhos, mas não sabem por que o fazem. Geralmente, são pessoas que sofreram abusos na infância e precisam de atenção e carinho a qualquer custo. Quase sempre a síndrome é de difícil diagnóstico. O médico Wagner Gattaz, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo, explica a razão: “A mentira é contada de forma convincente e o estado da criança é lastimável. Quando o médico suspeita de uma farsa, rapidamente o paciente de Münchausen desaparece, levando o filho”.