O Brasil não tem controle sobre a reutilização de materiais descartáveis usados em procedimentos médicos e cirúrgicos. Cateteres cardíacos, pinças de biopsias e drenos são exemplos de produtos que só têm garantia do fabricante quando utilizados uma única vez, mas que são usados pelos hospitais até o desgaste total.
Hoje não há fiscalização do número de vezes que esses materiais são reutilizados e nem das circunstâncias em que são feitas a sua limpeza e esterilização. Cada hospital tem a sua própria conduta e é o seu próprio fiscal.
Proibido
Em tese, uma portaria do Ministério da Saúde de 1986 proíbe a reutilização de qualquer tipo de material descartável. Mas, na prática, isso é rotina nos hospitais.
“Sabemos que a reutilização está disseminada tanto nos hospitais públicos como nos privados”, afirma o diretor-presidente da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), Cláudio Maierovitch Henriques, 42.
O presidente da Federação Brasileira de Hospitais, Eduardo de Oliveira, 52, confirma: “Sem a reutilização, alguns procedimentos seriam inviáveis pelo alto custo dos materiais”. Ele cita o exemplo de cateteres cardíacos, que chegam a custar R$ 5.000.
Há três anos a Anvisa tenta regularizar essa situação com a elaboração de uma portaria que estabeleça quais produtos serão de uso único e quais poderão ser reprocessados para outra utilização, desde que os hospitais apresentem um protocolo informando seus procedimentos para limpeza, esterilização, teste de funcionalidade e reembalagem.
Em 2001, a agência fez uma consulta pública para saber a opinião de todos os setores envolvidos na questão, mas a repercussão foi tamanha que até hoje não houve um consenso. De acordo com o diretor-presidente da Anvisa, a nova portaria deve se publicada até o final deste ano.
Regulamentação
Entre as propostas está a obrigatoriedade de que todos os materiais de uso único tragam em suas embalagens a seguinte expressão: “Uso único – proibido reprocessar”. Pelo menos 30 produtos não poderão ser reutilizados -agulhas com componentes plásticos, bisturis descartáveis, bolsas de sangue, drenos, seringas, coletores de urina, dispositivos intra-uterinos, entre outros.
Conforme a nova proposta, fica proibida a comercialização de materiais reprocessados, prática adotada por alguns hospitais, conforme a Folha apurou. Ou seja, só as unidades de saúde que realizam ou solicitam o serviço de reprocessamento poderão utilizar o produto.
Henriques diz que a segurança dos materiais será de responsabilidade do estabelecimento que irá utilizá-lo ainda que o reprocessamento seja terceirizado. As penalidades em casos de desobediência vão de multas -de R$ 2.000 a R$ 1,5 milhão- à interdição e fechamento do local.
Na opinião de Oliveira, devido à grande variedade de materiais utilizados, é quase impossível a Anvisa determinar regras fixas para as reutilizações porque isso depende do tipo de artigo empregado. “As comissões internas de controle de qualidade de cada hospital têm condições de decidir a melhor opção.”
Para Marilsa Basso, presidente interina da associação paulista de controle da infecção hospitalar, é preciso adequar o tipo de material à possibilidade de limpeza. “Há certos equipamentos que contêm parafusos, engates, reentrâncias em que a limpeza é dificultada”, explica Basso.
Por isso, na sua opinião, os hospitais deveriam questionar se realmente vale a pena reprocessar o material comparando o seu custo com o de um artigo novo.
Um dos maiores estudos realizados no país sobre a reutilização de materiais foi coordenado pelo infectologista Jorge Amarante, do Hospital Samaritano, com o apoio dos CDC (Centros de Controle e Prevenção de Doenças) dos Estados Unidos.
O trabalho, que avaliou a reutilização de cateteres de hemodinâmica e de angioplastia em 252 hospitais brasileiros, está servindo de base para a portaria que a Anvisa está elaborando.
Um dos pontos importantes foram os critérios adotados pelos hospitais para jogar fora o cateter (podem ocorrer vários problemas simultaneamente no instrumento): 92% dos casos de descarte foram por deformidade, 84,1% por oclusão do lúmen (luz), 69,8% por dificuldade de inserção, 63,5% pela presença de sangue ou matéria orgânica e 41,3% pelo número de reutilizações.
Critérios
Na opinião de Amarante, desde que se garantam os critérios de esterilidade e funcionalidade, a reutilização é uma prática que deve ser regulamentada no país.
Para a enfermeira Kazuko Graziano, 52, professora da Escola de Enfermagem da USP, hoje já existem processos protocolados que garantem a segurança dos artigos reprocessados. “Só não podemos continuar no piloto automático.”
Método do Incor é considerado modelo no país
DA REPORTAGEM LOCAL
O reprocessamento de artigos médicos e cirúrgicos adotado pelo Incor (Instituto do Coração) do Hospital das Clínicas de São Paulo é considerado modelo no país, segundo a Anvisa. A iniciativa é fruto de um trabalho piloto feito em parceria com o centro de controle de doenças dos EUA em 99.
A limpeza do cateter é realizada imediatamente após o exame na própria sala. Em seguida, o dispositivo é colocado em um recipiente com soro fisiológico, recebe jato de ar sob pressão para retirar as impurezas, é lavado com água ionizada e seco por ar comprimido. Depois de embalado, é levado para esterilização em óxido de etileno.
No estudo, os cateteres reprocessados foram comparados aos novos em relação aos sintomas apresentados pelos pacientes e dificuldades técnicas para a introdução do cateter. Não houve diferença entre ambos.
Indústria critica decisão da Anvisa
DA REPORTAGEM LOCAL
A Abimed (Associação Brasileira dos Importadores de Equipamentos, Produtos e Suprimentos Médico-Hospitalares) não concorda com a decisão da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) de permitir a reutilização dos produtos de uso único.
A associação alega que não existe nenhuma garantia de que os hospitais irão cumprir o que prometem no protocolo.
“Não temos confiança de que o acordo será cumprido. Hoje já é proibido o reprocessamento de muitos materiais, mas os hospitais o fazem livremente. Não há fiscalização”, afirma a farmacêutica Carla Viotto Belli, 32, uma das diretoras da Abimed.
“Elas [as indústrias] são contra e, por motivos óbvios, serão sempre contra”, afirmou o diretor-presidente da Anvisa, Cláudio Fernandes, referindo-se ao fato de o reprocessamento não ser vantajoso para as empresas do ponto de vista comercial.
A principal preocupação, segundo Carla Belli, é com os acidentes que podem ocorrer com o material reutilizado. “Os fabricantes garantem o primeiro uso. Não podem ser punidos por problemas que podem acontecer do segundo uso em diante”, diz.
De acordo com a farmacêutica, em eventuais ações indenizatórias, as indústrias têm como provar -por meio da análise do desgaste do material ou de resíduos encontrados do processo de esterilização- que o produto passou por reprocessamento.
Já segundo Fernandes, da Anvisa, o hospital será punido pelos acidentes que porventura ocorrerem com produtos reprocessados. “Os hospitais precisam ter responsabilidade sobre o que estão fazendo”, afirma.
Para ele, há certos materiais que podem e devem ser reprocessados devido ao alto custo. “Quando limpos, esterilizados e funcionando perfeitamente, esses materiais não oferecem riscos.”
O presidente da Federação Brasileira de Hospitais, Eduardo de Oliveira, concorda: “Nosso país é carente, não podemos ser perdulários. Já está provado que é possível fazer o reprocessamento de forma segura”.
Informar paciente não é consenso
DA REPORTAGEM LOCAL
Outra polêmica do reprocessamento de materiais descartáveis diz respeito ao direito do paciente de ser informado que será utilizado em sua cirurgia ou exame um material já usado.
Para o infectologista Jorge Amarante, o doente não precisa ter necessariamente essa informação porque, pressupõe-se, ele não estará exposto a mais riscos devido ao uso de material reprocessado. No estudo que realizou com cateteres cardíacos, o infectologista concluiu que, submetido a um processo correto de limpeza, de esterilização e teste de funcionalidade, o material é semelhante ao novo. “Ninguém diz a ele [ao paciente] que tal material é novo. Por que dizer que é reutilizado se a função e a esterilidade estarão garantidas?”, questiona.
Para o diretor-presidente da Anvisa, Cláudio Henriques, o paciente sempre tem o direito de saber tudo o que diz respeito à sua saúde e aos procedimentos médicos empregados, mas afirma que a portaria da Anvisa não deve tornar a informação obrigatória.
“Não queremos fazer distinção entre os produtos novos e os não-novos. O que interessa é que ofereçam eficácia e segurança”, diz.
Na opinião da enfermeira chilena Sandra Riveros, membro da federação internacional para suprimentos esterilizáveis, o paciente não só tem o direito de saber que está sendo submetido a um procedimento médico com material reutilizado como também deve processar a instituição caso sofra algum problema de saúde durante a intervenção. Ela concorda, porém, que é praticamente impossível relacionar possíveis infecções ou transmissão de doenças à reutilização de um material.
De acordo com Riveros, é comum os pacientes pagarem por um produto novo e serem tratados com outro já usado.
Segundo Eduardo de Oliveira, a federação dos hospitais orienta seus filiados que, ao cobrarem do paciente um determinado material, o devolvam após o procedimento. Em relação aos planos de saúde, afirma, muitos hospitais acertam o pagamento segundo a quantidade de vezes que determinado artigo pode ser reutilizado.