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Médicos, primos pobres do Estado

 

 

            Enquanto a nata do Judiciário discute um teto salarial que se aproxima de R$ 30 mil mensais, um médico com doutorado do Hospital das Clínicas, a nata da medicina brasileira, tem um salário-base que vai de R$ 1,4 mil a R$ 1,7 mil mensais. O Estado concede adicionais que produzem uma média final que raramente chega a R$ 4 mil – um sexto do que querem ganhar os procuradores de São Paulo. Mas o forte da remuneração final dos médicos é a gratificação por plantões (R$ 380 cada um, com um máximo de 12 por mês) e a produtividade. Os dois não são pagos nas férias e no 13º salário nem computados no cálculo da aposentadoria.

 

 

            Os médicos começaram a ser mal remunerados por Estados e municípios na primeira metade da década de 90, quando a universalização da saúde – o SUS – passou a consumir recursos cada vez maiores e os governos perceberam que seria preciso remanejar gastos, detecta o presidente do Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp), Desiré Callegari. Sobrou para os médicos: o sonho de uma carreira foi sepultado e suas remunerações passaram a ser constituídas por salários-base baixos, muitos adicionais e, o naco maior, de complementos que não incidem sobre o cálculo da aposentadoria.

 

            O presidente do Sindicato dos Médicos de São Paulo, Cid Carvalhaes, explica que os médicos sempre tiveram uma jornada de trabalho pequena (em geral, 20 horas semanais) para terem tempo de estudar. Com isso, a remuneração é baixa; ganhando pouco, o médico esqueceu a reciclagem e saiu em busca de outros empregos para engordar o orçamento. ‘Em vez de pagar um salário decente, o Estado prefere que o médico tenha mais de um emprego’, diz.

 

            O Cremesp tem números que expressam essa duplicidade consentida: 67% dos médicos atuam na rede pública e 60%, na rede privada, além dos 55% que têm consultório próprio. ‘Isso é ruim. Muitas vezes o paciente percebe que o médico está esgotado, não está na plenitude da capacidade de atender’, diz Callegari. Ele lembra que a imensa maioria das queixas de pacientes ao Cremesp advém de problemas causados pelo stress dos médicos.

 

CONFRONTO DE NÚMEROS

 

            O secretário de Saúde, Luiz Roberto Barradas, não quis falar ao Estado, mas sua assessoria informou que o menor salário de um médico no Estado é R$ 2.052,35, sem contar os plantões e a produtividade. E deu exemplos: um clínico geral do Hospital de São Matheus ganha R$ 5.867 e um psiquiatra do Hospital Heliópolis recebe R$ 4.120, sem os plantões. Uma médica do Heliópolis ouvida pelo Estado revelou que ganha R$ 1.400 líquidos e aduziu: não existe nenhum psiquiatra lotado naquele hospital.

 

            O urologista Eduardo Mazzucchi, com doutorado, afirma que seu holerite do Hospital das Clínicas traz todo mês uma remuneração de R$ 1.400 líquidos e os R$ 4 mil só são atingidos com a complementação de uma fundação do HC. Editais do HC para concursos de médicos de várias especialidades em 2005 e 2006 ofereciam sempre o mesmo salário: R$ 1.446,14.

 

            Uma das reclamações mais amargas do Cremesp e do Sindicato é que o Estado não dá aumentos há muito tempo. A secretaria rebate: assegura que nos últimos três anos os médicos tiveram 78% de aumentos salariais (24% de 2003 para 2004, 17% de 2004 para 2005 e 23% de 2005 para 2006).

 

            Os médicos argumentam que o forte de suas remunerações são os plantões, que podem render até R$ 4.560 em um mês. E afirmam que a chave para entender essa algaravia de números é a ‘oportuna’ política que remunera bem os plantões. Com ela, o Estado assegura o pleno funcionamento dos prontos-socorros – se faltar aos plantões, o médico depena seu ganho mensal. Por outro lado, a remuneração dos plantões não se reflete nos pagamentos de férias e do 13º nem é computada para a composição futura das aposentadorias dos médicos.

 

NÍVEIS

 

            Pesquisa do Centro de Políticas Sociais da FGV atesta que o médico com doutorado ou mestrado é o profissional de nível superior mais bem pago do Brasil (R$ 8.966,07, em média). O dado fotografa o topo da pirâmide: outra pesquisa, do Cremesp, indica que 52% dos médicos paulistas têm renda familiar menor que R$ 7,6 mil e só 46% deles ganham acima deste patamar. A pesquisa informa que a média salarial dos médicos paulistas, com todas as fontes de renda, é de R$ 8.287.

 

            Mas, para chegar ao topo da pirâmide, um médico trilha uma longa e penosa trajetória. Medicina é o mais demorado e o mais caro curso superior – seis anos de graduação, mais um mínimo de dois anos de residência médica (para neurocirurgiões, cinco anos), entre três e quatro anos para um mestrado e de quatro a cinco anos para doutorado. Se entrar na faculdade aos 18 anos, sem nenhuma interrupção, a formação máxima estará concluída aos 32. Mas, na verdade, a pirâmide vai se afunilando: apenas 65% dos graduados consegue superar o primeiro degrau, a residência médica.

 

            A hematologista Márcia Novaretti, com doutorado na USP e em Boston, estima que hoje, para ascender na carreira, o médico tem de dominar, pelo menos, duas línguas estrangeiras e gastar um mínimo de R$ 3 mil anuais com livros para atualização científica. Para Callegari, o destino de muitos profissionais com mestrado e doutorado é abandonar o serviço público, desestimulados pelos baixos salários e atraídos pela clientela particular. Assim, os muitos anos de estudo financiados pelo Estado escoam pelo ralo.

 

 

Para sobreviver, uma maratona de plantões

Com salário de R$ 435, infectologista faz 12 jornadas extras por mês para garantir ganho de R$ 6 mil

 

 

            O médico Carlos Frederico Dantas Anjos cometeu dois equívocos ao escolher a infectologia. O primeiro deles foi perceber, ainda na infância passada na Bahia, que muita gente morria de doenças infecciosas perfeitamente curáveis. Mas logo após se formar, em 1982, adveio a aids – e, já então, nem todas as infecciosas eram curáveis. O segundo foi ter ficado à mercê dos empregos públicos, destino inevitável dos infectologistas. Mas os equívocos continuam perdendo para o único acerto: ‘Adoro o que faço’, assegura.

 

            Adoraria mais se, com 22 anos de serviço público, não tivesse um salário-base de R$ 435,84 para 30 horas semanais. Com os penduricalhos e 12 plantões mensais, aufere por volta de R$ 6.000 líquidos. Esse salário tem um alto preço: pelos plantões, dorme fora de casa três noites por semana. ‘Tenho de dar plantões, senão não vivo.’ E mais: quando em férias e ao se aposentar, seu ganho não será maior que R$ 3.300 brutos.

 

            ‘Adoro o que faço’, replica o cirurgião Nilsen Gallacci, dois empregos públicos – um estadual, no Hospital Geral de Osasco, e um municipal, no Pronto-Socorro da Lapa. Em Osasco, ganha um líquido mensal de R$ 1.700; para multiplicar os pães, dá dois plantões semanais. Gallacci é movido a adrenalina: adora o desafio das emergências, tendo de inventar para salvar os fiapos de vidas que lhe caem nas mãos a toda hora. Há 24 anos no Estado, ele reclama um plano de carreira: ‘Estou no ponto de partida até hoje’, afirma.

 

            SEM CARREIRA

 

            O sanitarista Ciro Rossetti, concursado há 33 anos, lotado no Centro de Vigilância Epidemiológica, exibiu ao Estado, com um sorriso amargo, o holerite que registra o salário-base de R$ 530. Com os penduricalhos, recebe um líquido mensal de R$ 3.340 – que será, aproximadamente, sua aposentadoria. Mas a queixa maior de Rossetti é o fim da carreira dos sanitaristas, em 1987.

 

            Eduardo Mazzucchi diz que os médicos só continuam no serviço público, depois que formam clientela particular, pela possibilidade de trabalhar num hospital de ponta como o das Clínicas e, naturalmente, pelas complementações das fundações. Para os mais jovens, é insubstituível a chance de conviver com os médicos de alto nível. Para os dois grupos, nunca é desprezível um ganho que é pouco, mas entra contado todo mês.

 

            ‘A média em São Paulo é de três vínculos para cada médico’, diz Callegari. ‘Eu preferiria ter um emprego só, bem remunerado. Estaria mais descansado, atenderia melhor’, admite o presidente do Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp), Desiré Callegari, que afirma trabalhar, computados os plantões, em torno de 80 horas semanais.

 

            Dantas lembra que o Emílio Ribas, além de atender um quinto dos portadores de doenças infecciosas do País, é também um hospital-escola, com 60 residentes. ‘Nós formamos residentes, internos de nove escolas de vários Estados. Sabe quanto ganhamos de preceptoria? Nada. Na-da’, repete, escandindo as sílabas.